A Associação Meditar é uma sociedade civil com personalidade jurídica, sem fins lucrativos, não religiosa ou doutrinária. O primeiro núcleo surgiu em Porto Alegre-RS, e, atualmente, possui núcleos nas cidades de Santa Cruz do Sul, Lajeado, Novo Hambugo, Santa Maria, São Francisco de Paula, Capão da Canoa, Florianópolis, Chapecó e Cuiabá.

A Associação Meditar se propõe a: Difundir a prática da meditação; Congregar os praticantes da meditação; Coletar e divulgar os benefícios à saúde física e mental promovidos pela prática adequada da meditação; Criar, apoiar e promover a difusão de locais adequados para a prática de meditação (Núcleo ou Centros Meditar) no Brasil e no exterior; inclusive, com sedes rurais para abrigar seus membros em vida comunitária voltada à meditação, ao estudo, ao trabalho natural na terra, à contemplação da natureza.

Dedica-se a orientar a iniciação e o desenvolvimento das pessoas (empresa, escolas, associações) na meditação de forma clara, simples, objetiva e segura; Promover cursos, palestras, workshops, retiros e atividades voltadas à prática da meditação; Incentivar e promover a atitude mediativa, altruísta e pacífica, que implique na paz interna e externa, na não-violência, no respeito pela natureza, alimentação natural, bons valores humanos, no conhecimento e na sabedoria.

A Associação Meditar de Cuiabá se reúne sempre aos Sábados, às 08h00, no Espaço Ligia Prieto. Endereço: Rua Min.João Alberto, 137 – Araés - Cuiabá. Informações pelo tel. (65)3052-6634.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Buda e Mara

Você nunca nasceu

Quando você olha para a folha de papel que está lendo, pode pensar que ela não existia antes de ser feita no moinho de papel. Mas há uma nuvem flutuando nesta folha de papel. Se não houvesse nuvem, não haveria chuva e, portanto, nenhuma árvore poderia crescer para nos dar esse pedaço de papel. Mesmo se você não é um poeta, pode ver a nuvem flutuando neste pedaço de papel e se você remover a nuvem, o papel entra em colapso. Olhando profundamente nela, tocando-a profundamente, você pode ver também a nuvem.

Poderíamos perguntar se este papel existiu antes de nascer? Ele veio do nada? Não, algo nunca vem do nada. A folha de papel inter-é com o brilho do sol, com a chuva, com a Terra, com a fábrica de papel, com os trabalhadores da fábrica, com a comida que eles comem todo dia. Portanto a natureza do papel é interser. Se você tocar a natureza do papel, toca tudo no cosmos. Antes do seu nascimento na fábrica, o papel era brilho do sol, era uma árvore.

Você pode também pensar que quando nasceu, de repente se tornou algo do nada; de ninguém, de repente se tornou alguém. Mas na verdade, o momento do seu nascimento no hospital ou em casa foi apenas um momento de continuação, porque você já existia na sua mãe há nove meses. Isto significa que sua data na certidão de nascimento não está correta. Você tem que voltar nove meses para trás.

Portanto agora talvez você acredite que tem a verdade, que o momento de sua concepção é o momento em que você começou a existir. Mas deveríamos continuar a olhar profundamente. Antes do momento da concepção, você era nada, ninguém? Antes disso, metade de você estava no seu pai e a outra metade na sua mãe, em outra forma. É por isso que mesmo o momento da concepção é um momento de continuação.

Imagine o oceano com sua multidão de ondas. As ondas são todas diferentes; algumas são grandes, algumas pequenas, algumas são mais bonitas que outras. Você pode descrever ondas de muitas maneiras, mas quando você toca uma onda, está sempre tocando algo mais – água.

Visualize-se como uma onda na superfície do oceano. Assista enquanto você está sendo criado – você cresce na superfície, permanece um pouco e então retorna ao oceano. Você sabe que em algum ponto você irá terminar, mas se você sabe como tocar a base de seu ser – água – todos os seus medos irão desaparecer. Verá que como onda, divide a vida da água com todas as outras ondas. Esta é a natureza do interser. Quando você vive apenas a vida de uma onda e não é capaz de viver a vida da água, sofre muito.

Portanto a realidade é que você nunca nasceu – se você definir nascimento como se tornar algo de nada, se tornar alguém de ninguém. Cada momento é um momento de continuação. Você continua a vida sobre novas formas, isto é tudo.

Quando uma nuvem está prestes a se tornar chuva, não tem medo, porque embora saiba que ser uma nuvem flutuando no céu é maravilhoso, ser chuva caindo nos campos ou no oceano é também maravilhoso. É por isso que o momento que a nuvem se torna chuva não é um momento de morte, mas um momento de continuação.

Há pessoas que pensam que podem reduzir coisas a nada. Eles podem eliminar pessoas, podem assassinar alguém como John F. Kennedy, Martin Luther King Jr. ou Mahatma Gandhi, com a esperança que eles irão desaparecer para sempre. Mas o fato é que quando você mata alguém, esta pessoa se torna mais forte que antes. Mesmo esta folha de papel não pode ser reduzida a nada. Você já viu o que acontece quando colocamos um fósforo aceso em uma folha de papel. Não pode reduzi-la a nada, ela continua como calor, cinza e fumaça.

Buda e Mara

Quando falamos sobre o que Buda é, temos que falar também sobre o que Buda não é. O oposto de Buda é Mara. Se Buda é iluminação, então tem que haver algo que não é iluminação. Mara é a ausência de iluminação. Se o Buda é entendimento, então Mara é desentendimento, e se o Buda é bondade amorosa, então Mara é ódio ou raiva e assim por diante. Se não entendermos Mara, não podemos entender o Buda.

Assim como a rosa é feita de elementos não-rosa, o Buda é feito de elementos não-Buda, e entre esses elementos está Mara. Se o lixo não existisse, então a rosa não poderia existir também. Este insight é tão importante que transformou completamente meu entendimento do Buda.

Quando você olha para uma rosa, pode vê-la como imaculada e muito bonita. E o oposto da rosa é o lixo, que não é bonito e não cheira muito bem. Mas se olhar profundamente para a rosa, verá que o lixo está nela, antes dela, depois dela e também neste momento. Como isso é possível?

Jardineiros não jogam fora o lixo. Eles sabem que com carinho, em apenas alguns meses, o lixo se tornará composto que pode ser usado para fazer crescer alfaces, tomates e flores. Jardineiros são capazes de ver flores ou pepinos no lixo. Além disso, eles sabem que todas as flores se tornam lixo. Este é o significado da impermanência – todas as flores se tornam lixo. Embora ele seja fedorento e desagradável, se você sabe como cuidar dele, pode transformá-lo novamente em flores. Isso é que o Buda descreveu como o modo não dualístico de ver as coisas. Se olhar as coisas desse modo, entenderá que o lixo é capaz de se tornar uma flor e a flor é capaz de se tornar lixo.

Cada vez que praticar a plena consciência – quando vive em plena atenção – você é um Buda. Quando vive no esquecimento, você é Mara. Mas não pense que Buda e Mara são inimigos e que passam o dia todo lutando entre si. Não. Eles são amigos. Aqui segue uma história que eu escrevi:

Um dia, o Buda estava em uma caverna, onde estava fresco. Ananda, seu assistente, estava praticando meditação caminhando perto da caverna, tentando interceptar as muitas pessoas que sempre vinham visitar o Buda, de forma que ele não recebesse convidados o dia todo. Neste dia, enquanto Ananda estava praticando, viu alguém se aproximando. Quando a pessoa chegou perto, Ananda reconheceu Mara.

Mara tentou o Buda na noite antes dele se tornar iluminado. Mara disse ao Buda que ele poderia se tornar um homem de grande poder – um político, um rei, um presidente, um ministro ou um bem sucedido homem de negócios com dinheiro e lindas mulheres – se ele desistisse de sua prática de plena consciência. Mara tentou duramente convencer o Buda, mas não funcionou.

Embora Ananda tenha se sentido desconfortável ao ver Mara, Mara já o tinha visto, portanto não poderia se esconder. Eles se cumprimentaram.

Mara disse: “Eu quero ver o Buda.”

Quando o líder de uma corporação não quer ver alguém, ele pede para sua secretária dizer: “Desculpe, ele agora está em uma conferência.” Embora Ananda quisesse dizer algo assim, sabia que estaria mentindo e ele queria praticar o Quarto Treinamento - não mentir. Portanto ele decidiu dizer o que estava em seu coração para Mara.

“Mara, porque o Buda deveria vê-lo? Qual o motivo? Você não lembra que foi derrotado pelo Buda sob a árvore de Bodhi? Como você ousa vê-lo de novo? Não tem vergonha? Porque ele deveria vê-lo? Você é seu inimigo.”

Mara não foi desencorajado pelas palavras do Venerável Ananda. Ele apenas riu enquanto ouvia ao jovem. Quando Ananda terminou, Mara riu e perguntou: “Realmente seu professor diz que tem inimigos?”

Isto fez Ananda ficar muito desconfortável. Não parecia correto dizer que o Buda tinha inimigos, mas ele disse! O Buda nunca disse que tinha inimigos. Se você não está concentrando muito profundamente ou plenamente consciente, pode dizer coisas que são contrárias ao que você sabe e pratica. Ananda estava confuso. Ele entrou na caverna e anunciou Mara, esperando que seu professor dissesse, “Diga a ele que não estou em casa!” ou “Diga a ele que estou em uma conferência.”

Para surpresa de Ananda, o Buda sorriu e disse: “Mara! Maravilha! Peça a ele para entrar!”

Ananda estava perplexo pela resposta do Buda. Mas ele fez o que o Buda disse e convidou Mara para entrar. E você sabe o que o Buda fez? Ele abraçou Mara! Ananda não podia entender isso. Então o Buda convidou Mara para sentar no melhor lugar da caverna e virando-se para seu amado discípulo disse: “Ananda, você poderia ir e nos preparar um chá de ervas?”

Como você deve ter adivinhado, Ananda não estava muito feliz com isso. Fazer chá para o Buda era uma coisa – ele poderia fazer milhares de vezes ao dia – mas fazer chá para Mara não era algo que ele queria fazer. Mas como foi o Buda que pediu, ele não poderia recusar.

Buda olhou amavelmente para Mara. “Querido amigo”, ele disse, “como tem passado? Está tudo bem?”

Mara respondeu: “Não, as coisas não vão bem, elas vão mal. Estou muito cansado de ser Mara. Quero ser outra pessoa, alguém como você. Onde quer que você vá é bem vindo e as pessoas te reverenciam. Você tem muitos monges e monjas com faces amáveis te seguindo e te oferecem bananas, laranjas e kiwis.”

“Onde quer que eu vá”, Mara continuou, “tenho que vestir a persona de um demônio – tenho que falar de uma maneira convincente e manter um exército de pequenos demônios maliciosos. Cada vez que expiro, tenho que respirar fumaça do meu nariz! Mas eu não ligo muito para essas coisas; o que me aborrece bastante é que meus discípulos, os pequenos Maras, começaram a falar sobre transformação e cura. Quando eles falam sobre liberação e budeidade, não posso suportar. É por isso que eu vim para te pedir se podemos trocar os papéis. Você pode ser Mara e eu serei Buda.

Quando o Venerável Ananda ouviu, ficou tão aterrorizado que pensou que seu coração poderia parar. Como ficaria se o Buda decidisse trocar papéis? Então Ananda seria o assistente de Mara! Ananda esperou que o Buda recusasse.

O Buda calmamente olhou para Mara e sorriu. “Você acha que é fácil ser um Buda?” Ele perguntou. “Pessoas estão sempre me entendendo mal, colocando palavras na minha boca. Eles constroem templos com estátuas minhas feitas de cobre, gesso, ouro e até mesmo esmeraldas. Grandes multidões me oferecem bananas, laranjas, doces e outras coisas. Ás vezes sou carregado em procissão, sentando como um bêbado em cima de flores. Eu não gosto de ser esse tipo de Buda. Muitas coisas danosas foram feitas em meu nome. Portanto, você pode ver que ser um Buda é também muito difícil. Ser um professor e ajudar a prática das pessoas não é uma profissão fácil. Na verdade, eu não penso que você gostaria muito de ser um Buda. É melhor se ambos continuarmos a fazer o que estamos fazendo e tentar fazer o nosso melhor.”

Se você estivesse lá com Ananda, e se estivesse plenamente consciente, poderia ter sentido que Buda e Mara eram amigos. Eles se complementam como dia e noite, flor e lixo vindo juntos. Este é um profundo ensinamento do Buda.

Agora você tem uma idéia de que tipo de relação existe entre Buda e Mara. Buda é como a flor, muito fresca e bonita. Mara é como o lixo – fedorento, coberto de moscas e desagradável de tocar. Mara não é de forma nenhuma agradável, mas se você sabe como transformar Mara, Mara se tornará o Buda. E se você não souber como tomar conta do Buda, ele se tornará Mara.

Olhando as coisas desse modo, sabemos que os elementos não-rosa, incluindo o lixo, se uniram para tornar a rosa possível. Portanto o Buda é algo como a rosa. Mas se você olhar profundamente no Buda, verá Mara; Buda é feito de elementos de Mara. E quando você entende esse ensinamento budista, pode ver a vacuidade de tudo, porque nada tem sua própria existência absoluta. Uma rosa é feita de elementos não-rosa, por isso não tem existência separada; é por isso que é chamada vazia. Uma rosa é vazia de um eu separado, porque é sempre feita de elementos não rosa.

Interser inclui tudo – não apenas o Buda e Mara, rosas e lixo – mas também sofrimento e felicidade, bem e mal. Pegue o sofrimento, por exemplo. Sofrimento é feito de felicidade e felicidade é feita de sofrimento. Bem é feito do mal, e mal é feito do bem. Direita é feita da esquerda e esquerda é feita da direita. Isto precisa daquilo para ser. Removendo isto, aquilo irá desaparecer. O Buda disse, “Isto é porque aquilo é.” Isto é um ensinamento muito especial do budismo.

Portanto a prática da meditação budista começa com a aceitação da rosa e do lixo em nós. Quando vemos a rosa em nós, ficamos felizes, mas estamos conscientes que se não tomarmos cuidado disso, rapidamente se tornará um pedaço de lixo. Portanto, aprendemos como tomar conta de forma que ficará conosco mais tempo. Quando começa a deteriorar em lixo, não ficamos com medo, porque sabemos como transformar o lixo na rosa de novo. Portanto quando você testemunhar um sentimento de ansiedade, se você olhar profundamente para ele, verá uma semente de felicidade e liberação aí. É assim que a transformação acontece.

(Do livro “Under a Rose Apple Tree” – Thich Nhat Hanh – traduzido por Leonardo Dobbin)
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Do que você se alimenta?

Por Thich Nhat Hanh

Os Quatro Nutrientes

O Buda falou dos quarto tipos de nutrientes – alimentos, impressões sensoriais, volição e consciência. O primeiro tipo, alimento, é o que você come ou bebe. É responsável por seu bem estar ou mal estar físico e mental. Diferentes comidas contêm diferentes toxinas e certos tipos de comida podem ser inapropriadas para seu corpo. É por isso que temos que olhar na natureza de nosso corpo e da comida que ingerimos para ver se eles são compatíveis. Inspirando e expirando em plena consciência, perguntamos, “Essa comida é compatível com meu corpo e minha consciência?” Seguindo a prescrição da plena consciência você saberá o que consumir.

O primeiro nutriente: alimento

Nos ensinamentos de minha tradição, quando começamos a comer, meditamos nas Cinco Contemplações. As duas primeiras contemplações são: “Este alimento é presente de todo Universo, ele veio da terra, do céu, de numerosos seres vivos e de muito trabalho árduo. Que possamos comê-lo em plena consciência e com gratidão a fim de sermos dignos de recebê-lo.” Para ser digno de receber nossa comida, temos que comer em plena consciência. Se não comermos em plena consciência, não sentiremos gratidão e poderemos estragar nosso corpo e consciência. Se comermos nossa comida com gratidão e plena consciência, somos dignos dela.

A terceira contemplação é ser consciente de nossas formações mentais negativas, especialmente nossa tendência de comer sem moderação. O Buda sempre lembra a seus discípulos para comer moderadamente. A quarta contemplação é ver se a comida que você está ingerindo é saudável e manterá seu corpo saudável. Comida é um tipo de remédio. Deveria ser equilibrada em termos de yin e yang. Olhando profundamente e em plena consciência para sua comida, você saberá que tipos de comida pode comer e o que você deve abster de comer.  A quinta contemplação é: “Aceitamos este alimento para que possamos nutrir e fortalecer nossa Sangha e cultivar nosso ideal de servir a todos os seres.”

Alguns de nós têm um sentimento de vazio, nervosismo e mal-estar por dentro. Não sabemos como lidar com esses sentimentos desagradáveis, e por isso há sempre algo na geladeira. Comemos e bebemos para esquecer a dor. Muitos de nós fazem isso. Os monásticos nos avisam para sempre comermos com nossa Sangha, a menos que estejamos doentes. Esta prática ajuda muito. Você pode fazer isso com sua família, que é também sua Sangha. Na hora do jantar, quando todos os membros da família estiverem sentados em volta da mesa, podemos praticar as Cinco Contemplações. Podemos convidar as crianças para dizer em voz alta as Contemplações. Cada um de nós pode olhar profundamente para sua comida para ver se é apropriada. Deste modo podemos criar uma energia coletiva na família que nos ajuda a comer apropriadamente e a não contaminar nossos corpos.

O Buda usava a seguinte imagem para ilustrar o primeiro nutriente. Um casal começou uma viagem através do deserto com seu pequeno filho. No meio do caminho no deserto, eles perceberam que as provisões tinham acabado. Eles sabiam que iam morrer antes de terminarem a travessia. Depois de uma dolorosa discussão, o casal decidiu matar o pequeno menino. Cada dia eles comeram um pouco da carne do pequeno menino enquanto continuavam a caminhar pelo deserto. Finalmente, eles conseguiram sair do deserto vivos. O Buda perguntou aos monges, “Querido amigos, vocês acham que o casal gostou de comer a carne do próprio filho?” Os monges responderam, “não.” Se não comermos apropriadamente, se destruirmos a nossa saúde, se comermos e bebermos de tal modo que seja tirada dos outros seres vivos a chance de viver, então estaremos comendo a carne de nossos pais e filhos em nós e ao nosso redor.

O segundo nutriente: impressões sensoriais

O segundo tipo de nutriente são as impressões sensoriais. Consumimos comida através de nossos olhos, nariz, ouvidos e corpo. Quando dirigimos pela cidade, ouvimos sons, vemos imagens e sentimos odores, todos estes considerados comida. Quando vemos um filme, estamos consumindo certo tipo de comida. Muitos dos itens que consumimos contêm toxinas. Um programa de TV ou novela podem ser altamente tóxicos. As notícias que lemos no jornal podem trazer toxinas para nossa consciência. Nosso medo, stress e desespero são nutridos por tais notícias, informações, visões e sons. Propaganda também promete que se você comprar certo produto será mais feliz. “Felicidade é fácil – apenas compre isso.” As visões e sons usados para capturar nossa atenção e que nos são empurrados contêm toxinas. Temos que nos proteger e guardar nossos seis sentidos contra essas toxinas enquanto dirigimos pela cidade.

O Buda disse que os olhos são um oceano profundo – ele falava como um poeta – com ondas escondidas e monstros marinhos sob a superfície. Se você não é plenamente consciente e não sabe como proteger e guardar as portas dos seus sentidos, afundará no oceano das formas – às vezes várias vezes ao dia. Com o barco da plena consciência, navegamos através do oceano das formas e nos seguraremos firmemente para que nosso barco não afunde. O Buda também disse que o ouvido é um oceano profundo com muitas ondas escondidas e monstros marinhos. Se você não está plenamente consciente, pode afundar no oceano dos sons.

Depressão também é nutrida pelas visões e sons. Não acontece sozinha. É criada e nutrida diariamente pelo nosso modo de consumir. Andando conscientemente através do aeroporto de Paris, vi muitos anúncios de perfumes chamados “Samsara”, “Scorpion” (Escorpião) e “Poison” (Veneno). Eles ousam chamá-los por seus verdadeiros nomes. Sabemos que perfume é um item de consumo e uma isca. Em uma isca há o anzol, e nos somos os peixes inocentes. Os produtos são anunciados, tão habilmente e a isca é tão atrativa que com uma mordida, somos pegos. O que temos para nos defendermos? Nada exceto a nossa plena consciência.

Plena consciência é o único agente que pode guardar a porta dos nossos seis sentidos e nos proteger. Os Cinco Treinamentos de Plena Consciência são insights daqueles que praticam plena consciência. Eles são prescrições concretas para nossa proteção diária. Se vivermos baseados nos Cinco Treinamentos nos protegeremos, e também nossas famílias e nossa sociedade. Os Cinco Treinamentos não foram criados por um deus ou são impostos a nós. Eles são fruto da nossa visão profunda. Estando conscientes do sofrimento causado pelo consumo não consciente, estamos determinados a não consumir itens que tragam toxinas, desarmonia, dor e tristeza para dentro de nós, destruindo nosso bem-estar físico e mental. Os Cinco Treinamentos não são um conjunto de regras, mas guias para prática de plena consciência. Precisamos nos treinar para viver de acordo. Esta é a sabedoria da auto-proteção.

O Buda usou a imagem de uma vaca com doença que destruiu a maioria da sua pele para representar o segundo tipo de nutriente: impressões sensoriais. Se a vaca ficar perto de uma parede velha ou árvore velha, todos os insetos da parede ou árvore sairão e se fixarão no seu corpo e sugarão seu sangue. Sem plena consciência, as impressões sensoriais a que somos expostos, nos destruirão um pouco a cada dia e as toxinas penetrarão no nosso corpo e consciência. Assim como a vaca precisa de uma pele saudável para se proteger, precisamos da prática da plena consciência para guardar nossos seis sentidos.

O terceiro nutriente: volição

O terceiro tipo de nutriente é a volição – nosso desejo mais profundo. Este tipo de energia nos empurra para fazermos as coisas em nossa vida diária. Temos que olhar profundamente para dentro de nós para ver que tipo de energia motiva nossas ações diárias. Estamos constantemente trabalhando duro de forma a ir a algum lugar ou fazer algo. Qual é o objetivo deste tipo de atividade? O terceiro nutriente nos motiva e pode nos trazer muita felicidade ou sofrimento.

Que tipo de energia Madre Teresa tinha em sua vida diária? Ela tinha o desejo de ajudar as pessoas pobres, sem recursos, apoio ou proteção. O desejo de aliviar o sofrimento de muitas pessoas é uma tremenda fonte de energia. Se você tem a mesma intenção – volição – dentro de você, sua vida será preenchida com felicidade. Quando compaixão – o desejo de aliviar o sofrimento dos outros – está dentro de você e te motiva, você pode se relacionar com as pessoas facilmente e ter uma vida simples. O alívio e felicidade que você leva para as pessoas pode ser sua recompensa. Quando você pode fazer uma pessoa sorrir, se sente maravilhoso. Não quer a recompensa, mas ela chega a você de qualquer forma. Há pessoas cheias de ódio que querem viver de forma a punir a pessoa que odeiam. Tal pessoa não pode ser feliz por que sua única intenção e fonte de energia é o ódio. Se estivermos motivados por uma energia negativa, nossa vida será cheia de sofrimento.

Sidarta Gautama tinha uma fonte vital de energia dentro dele. É por isso que durante 45 anos ele trabalhou diligentemente e ajudou muitas pessoas – reis, ministros, mendigos e prostitutas. Ele ajudou a todos porque era motivado pelo desejo de aliviar o sofrimento deles. Todos nós precisamos estar conscientes da natureza da nossa fonte de energia, porque ela determina a qualidade de nossa vida. Se esta energia é somente desejo – por fama, riqueza ou sexo – então ela nos fará sofrer.

O Buda usou a seguinte imagem para ilustrar o terceiro tipo de nutriente. Ele descreveu uma pessoa que quer viver e não quer sofrer, mas que é carregada por dois homens fortes e jogada em uma fogueira. Os dois homens fortes representam a volição, uma energia que nos empurra em direção ao sofrimento e morte. Como meditadores, devemos gastar tempo sentando e olhando para dentro de nós mesmos diariamente para identificar a fonte de energia que nos está empurrando e a direção em que estamos indo. Devemos ver se nossa intenção está nos trazendo sofrimento e desespero. Se for assim, devemos liberá-la e achar outra fonte de energia.

O quarto nutriente: consciência

O quarto tipo de nutriente é a consciência, a base para a manifestação de nosso corpo, nossos estados mentais e nosso ambiente. A consciência representa a soma de todas as ações que foram feitas: pensamentos, falas e atos do corpo. A maturidade da consciência traz a tona a manifestação do nosso corpo atual, nossos estados mentais atuais, e nosso ambiente atual. A consciência aqui é descrita em termos da mente iludida, a mente caracterizada por visões errôneas e aflições que resultam de volições não saudáveis. O sofrimento dos três reinos (desejo, forma e não forma) é a retribuição de nossas ações que determina a natureza e qualidade de nossa consciência. Se a consciência se alimenta de um tipo de comida saudável (Visão Correta, Pensamento Correto, Plena Consciência Correta, Fala Correta, Concentração Correta, etc.) ela experimentará transformação e se tornará mente verdadeira, que servirá como base para manifestação de um corpo saudável, estados mentais felizes e benéficos e um ambiente são e bonito.

O Buda usou a seguinte imagem para ilustrar o quarto nutriente. Um criminoso foi preso. O rei deu a ordem de esfaqueá-lo com cem facadas. O criminoso não morreu. A mesma punição foi repetida ao meio dia e a tarde. Ainda assim ele não morreu. A punição foi repetida no dia seguinte e no próximo.

Permitimos que nossa consciência seja alimentada todo dia com o veneno da ignorância, ganância, fala não benéfica e desejos não saudáveis. Nossa consciência continua a crescer na direção da mente iludida e traz a tona muito sofrimento. Poderíamos mudar o alimento de nossa consciência e ajudá-la a crescer na direção oposta, a direção da mente verdadeira. À luz dos ensinamentos relativos aos Doze Elos da Origem Interdependente, consciência resulta da ignorância e dos impulsos não benéficos.

Sabemos que entendimento e compaixão são fontes de energia que podem trazer às pessoas à nossa volta muita felicidade, de forma que praticamos o seu cultivo. O Buda disse, “se você olhar para dentro do mal-estar e identificar a origem do nutriente que o trouxe até você, já estará no caminho da emancipação.” Você já começou a ser liberado. Precisa apenas de cortar a fonte desses nutrientes para se libertar deles. Poucas semanas depois, você notará a diferença. Nada pode sobreviver sem comida; se você cortar a sua fonte, sua depressão, tristeza ou desespero irão morrer.

Identificando a origem dos nutrientes, você percebe a Segunda Nobre Verdade: samudaya, a criação do mal-estar. Você sabe que o oposto de samudaya – bem-estar – é possível. Sabe que para alcançar bem-estar, precisa cortar a origem dos nutrientes errados e achar os corretos – Visão Correta, Entendimento Correto, Fala Correta, Modo de Vida Correto, Concentração Correta e assim por diante. O Nobre Caminho Óctuplo pode trazer bem-estar e por fim ao mal-estar. O outro caminho é o ignóbil caminho do consumo sem plena consciência. Das Quatro Nobres Verdades, duas falam do mal-estar e da sua criação, enquanto que as outras duas falam do bem-estar e o caminho que leva à restauração. Este é o conteúdo da primeira palestra de Dharma que o recém iluminado Buda ofereceu a cinco monges em Deer Park.

(Do livro “The Path of Emancipation” – Thich Nhat Hanh – traduzido por Leonardo Dobbin)
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quinta-feira, 5 de junho de 2014

Não ser enganado pelas palavras e ideias


Por Tich Nhat Hanh

Mestre Linji avisava a seus amigos no caminho para que aqueles que sinceramente estavam tentando viver o Dharma não fossem enganados pelos demônios, as pessoas carecas vestindo robes de monges, vivendo nos templos e prostrando em frente do Buda, enquanto ainda desejavam riqueza e ganho pessoal.

As palavras do século nono são um pouco deferentes daquelas do século vinte e um, mas têm o mesmo significado. Dizemos: “Seja você mesmo. Não tente ser ninguém mais. Ser uma pessoa comum já é maravilhoso.”

Prática não é trabalho duro. Quando trabalhamos duro em alguma coisa, sejam negócios ou iluminação, então não podemos parar de forma a ver todas as maravilhas da vida dentro de nós e à nossa volta. O Sutra do Coração (Prajna Paramita) diz isso claramente: “Sem ganho, sem realização.” Porque você já é o que deseja ser. Não há nada a se obter. Pare. Não faça nada. Pode parecer que não vamos a nenhum lugar, mas de fato estamos profundamente no momento presente e somos capazes de tocar a dimensão última.

Nossa mente comum já está no caminho. Se nós continuarmos pensando sobre ir lá fora e achar algo na vizinhança de nossa casa, então já estamos errando. Sabemos quem o Buda é? Sabemos quem somos? Podemos ter uma idéia sobre nós mesmos, mas nossa idéia não é ainda quem realmente somos. Não achamos ainda nosso verdadeiro ser.

A palavra “Buda” é só uma palavra. O mestre Linji disse “Não procure o Buda, Buda é apenas um termo vazio. Você conhece aquele que está buscando? Os mestres e os Budas das três eras apenas buscaram o Dharma. No presente você olha para dentro do Zen e estuda o caminho de forma a buscar o Dharma. Se você perceber o Dharma então tudo está resolvido. Se você não percebeu isso, continuará a renascer nos cinco destinos.”

Podemos pensar que o mestre Linji está dizendo: “Não busque o Buda, ao invés disso procure o Dharma.” Mas isso também é perigoso porque também temos nomes e palavras que carregam uma imagem do Dharma e não sua verdadeira natureza. Dharma é o Dharma da mente. Mente não tem forma, é difundida nas dez direções, e está manifestando sua atividade bem em frente de nós. O que estamos procurando é tão diferente da realidade, assim como a terra é do céu. Nossa mente é como um pintor criando uma versão da realidade.

A realidade última apenas parece difícil porque logo que tentamos explicá-la, já estamos discriminando e, portanto perdemos a essência da dimensão última que é não discriminação. Nossas mentes têm a tendência a discriminar. Nossa mente divide o mundo entre sujeito e objeto. Eu sou diferente de você, o pai é diferente do filho, as nuvens são diferentes dos rios.

A mente é como uma faca afiada que corta a realidade em pedaços separados. Dizemos: “Eu amo isso, odeio aquilo; gosto disso, desgosto daquilo. Eu amo o Buda, odeio Mara.” Amamos a beleza, odiamos a feiúra, amamos a vida e odiamos a morte. Mas morte e vida intersão. Em cada minuto, cada segundo, muitas de nossas células estão morrendo e muitas outras estão nascendo.

Portanto morte e nascimento são apenas dois lados da mesma realidade. Quando o pensamento dualista não está presente, tudo se torna claro. Isto é expresso nas linhas de um poema atribuído ao Terceiro Patriarca, Sengcan:

O grande caminho, a verdade absoluta não é difícil.
Apenas fica difícil porque há discriminação.
Nós apenas precisamos não amar ou odiar,
Então naturalmente ele se tornará muito claro.

Palestras de Dharma não são a verdade. O Dharma verdadeiro existe na mente dos estudantes como sementes e as palestras de Dharma são apenas como pequenas nuvens que liberam chuva e fazem com que as sementes nas mentes dos praticantes brotem e se manifestem. Os professores de Dharma não podem transmitir a verdade mais que um pai pode transmitir totalmente suas experiências aos filhos. Quanto mais um pai persiste com o filho, mas ele se torna bloqueado. O melhor que o pai pode fazer é ser como a nuvem de chuva e nutrir as semente de sabedoria no filho. Quando o filho crescer e passar por dificuldades e tiver suas próprias experiências; então a sabedoria que foi regada se manifestará.

Mestre Linji ensinou: “Eu falo do Dharma da Mente-Terra para ajudar as pessoas a penetrarem no sagrado e no profano; no puro e no corrupto; na verdade e na prática estabelecida. Contudo a verdade e a prática estabelecida, o sagrado e o profano dentro de você não podem ser descritos em termos e conceitos de sagrado, profano, verdade e convencional. O profano, o sagrado, a verdade e a prática estabelecida nunca se referem a elas mesmas como profano, sagrado, convencional e verdadeiro.”

Mesmo que tenhamos a dimensão última, o comum, o santo e o profano dentro de nós, não deveríamos usar essas palavras porque sua verdade é algo diferente. Quando pensamos em Paris, temos uma idéia, uma visão sobre Paris e palavras para descrever Paris. Mas Paris é muito diferente da visão e das palavras que temos. Talvez tenhamos ido fazer compras em Paris por alguns dias e por isso pensamos que a conhecemos. Há aqueles que viveram dez, vinte anos em Paris e não descobriram toda a verdade sobre a cidade. Não deveríamos confundir a palavra e a idéia com a verdade.

Se pudermos agarrar firmemente esta chave, esta essência, então deveríamos aplicá-la imediatamente na nossa vida diária. Nós somos pobres, mas pensamos que somos prósperos. Somos escravos, mas pensamos que somos mestres. Somos a continuação de nossos ancestrais, mas pensamos que estamos sozinhos. Não deveríamos ser capturados por palavras e terminologias.

Mestre Linji ensinou: “O Dharma deste monge-montanha é muito diferente do Dharma de pessoas que estão apegadas ao mundo. Mesmo se Manjushri e Samantabhadra aparecessem diante de mim nas suas diferentes manifestações e perguntassem sobre o Dharma, tão logo eles abrissem suas bocas e dissessem “Mestre”, eu iria ser capaz de farejá-los.”

Ele está dizendo que pode olhar para alguém e saber quem ele é. Baseado nas aparências externas, eu não discrimino entre comum e santo. Só porque um monge tem o nome de Manjushri, o nome do bodisatva da grande sabedoria, não significa que ele é santo. Apenas porque uma mulher tem um nome comum, eu não penso que ela não é santa.

Comumente, mesmo antes das pessoas abrirem suas bocas, discriminamos. Um francês sentando a nossa frente e imediatamente temos alguma idéia do que significa ser francês. Não permitimos que a realidade daquela pessoa se revele para nós. Se sabemos que alguém é um padre católico ou um monge budista, imediatamente temos uma idéia do que significa essa pessoa. Muitas pessoas se disfarçam como o Bodisatva Manjushri ou o Bodisatva Samantabhadra. Se nos livramos da discriminação, então não poderemos ser enganados.

Quando estudamos budismo, procuramos por um professor e acreditamos que o professor tem a sabedoria. Temos que acreditar que aquele professor é sagrado e outras pessoas são comuns de forma que possamos seguir esse professor. O professor coloca o robe da santidade e acreditamos que imediatamente ele se torna santo. Este é o lugar que nos mata. É um tipo de morte quando fugimos do comum em direção ao que pensamos ser sagrado. Nós fugimos de nós mesmos.

Mestre Linji não podia mais ser enganado porque não mais discriminava entre o sagrado e o profano. Uma pessoa aparecia diante dele e se a pessoa dissesse ser um bodisatva ou uma pessoa comum, mestre Linji veria sua natureza verdadeira.

(Traduzido do livro “Nothing to do Nowhere to go” – Thich Nhat Hanh por Leonardo Dobbin)
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