A Associação Meditar é uma sociedade civil com personalidade jurídica, sem fins lucrativos, não religiosa ou doutrinária. O primeiro núcleo surgiu em Porto Alegre-RS, e, atualmente, possui núcleos nas cidades de Santa Cruz do Sul, Lajeado, Novo Hambugo, Santa Maria, São Francisco de Paula, Capão da Canoa, Florianópolis, Chapecó e Cuiabá.

A Associação Meditar se propõe a: Difundir a prática da meditação; Congregar os praticantes da meditação; Coletar e divulgar os benefícios à saúde física e mental promovidos pela prática adequada da meditação; Criar, apoiar e promover a difusão de locais adequados para a prática de meditação (Núcleo ou Centros Meditar) no Brasil e no exterior; inclusive, com sedes rurais para abrigar seus membros em vida comunitária voltada à meditação, ao estudo, ao trabalho natural na terra, à contemplação da natureza.

Dedica-se a orientar a iniciação e o desenvolvimento das pessoas (empresa, escolas, associações) na meditação de forma clara, simples, objetiva e segura; Promover cursos, palestras, workshops, retiros e atividades voltadas à prática da meditação; Incentivar e promover a atitude mediativa, altruísta e pacífica, que implique na paz interna e externa, na não-violência, no respeito pela natureza, alimentação natural, bons valores humanos, no conhecimento e na sabedoria.

A Associação Meditar de Cuiabá se reúne sempre aos Sábados, às 08h00, no Espaço Ligia Prieto. Endereço: Rua Min.João Alberto, 137 – Araés - Cuiabá. Informações pelo tel. (65)3052-6634.

sábado, 30 de março de 2013

Descobrindo a verdadeira natureza da raiva

 
No momento em que você sente raiva, você tem a tendência de acreditar que seu sentimento foi criado por outra pessoa. Você culpa esta pessoa por todo o seu sofrimento. Mas, ao fazer um exame profundo, você talvez perceba que a semente da raiva que existe em você é a principal causa do seu sofrimento. Muitas outras pessoas, quando confrontadas com a mesma situação, não ficariam com a raiva com que você fica. Elas ouvem as mesmas palavras, presenciam a mesma situação, mas são capazes de permanecer mais calmas, sem se deixarem afetar tanto pelas circunstâncias. Por que você se enraivece com tanta facilidade? Talvez isso aconteça porque a semente da raiva é muito forte, e como você não praticou os métodos destinados a cuidar bem da raiva, a semente dela pode ter sido rega da no passado com excessiva freqüência.

Todos temos uma semente da raiva nas profundezas da nossa consciência. No entanto, em alguns de nós, esta semente é maior do que nossas outras sementes como a do amor e a da compaixão. A semente da raiva pode ser maior por não ter sido cuidada através da nossa prática no passado. Por isso, como já disse, quando começamos a cultivar a energia da plena consciência, a primeira coisa que percebemos com clareza é que a principal causa do nosso sofrimento, da nossa aflição, não é a outra pessoa, e sim a semente da raiva que existe em nós. Nesse momento, paramos de considerar a outra pessoa culpada do nosso sofrimento. Compreendemos que ela é apenas uma causa secundária. Você sente um enorme alívio ao descobrir isso e começa a se sentir muito melhor. Mas a outra pessoa pode ainda estar sofrendo porque não aprendeu a cuidar da própria raiva. Quando isso acontece, está na hora de ajudar o outro.

Quando não sabemos lidar com o nosso sofrimento, deixamos que ele se derrame sobre as pessoas que estão em volta. Quando você sofre, faz com que as pessoas ao seu redor também sofram. Isso é bastante natural. É por esse motivo que temos que aprender a lidar com o nosso sofrimento, para não o espalharmos em torno de nós. Quando você é o chefe da família, por exemplo, você sabe que o bem-estar dos seus familiares é extremamente importante. Como você tem compaixão, não permite que seu sofrimento afete os que estão à sua volta. Você pratica e aprende a lidar com seu sofrimento porque sabe que nem ele nem sua felicidade são uma questão individual.

Quando você está com raiva e não quer lidar com ela, fica sem defesa, sofre, e também faz as pessoas à sua volta sofrerem. Sua primeira reação é achar que a pessoa que causou a raiva merece ser punida. Tem vontade de castigá-la porque ela fez você sofrer. Mas, depois de praticar durante dez ou quinze minutos a respiração, a meditação andando e o olhar consciente, você compreende que ela precisa de ajuda e não de punição. Esta é uma percepção justa. Essa pessoa pode ser alguém muito próximo a você sua esposa, seu marido, algum dos filhos. Se você não ajudá-la, quem o fará?

Depois então de acolher e abraçar a raiva, sentindo-se muito melhor, você nota que a outra pessoa continua a sofrer. Esta percepção gera em você um movimento em direção a ela, num grande desejo de ajudá-la. Trata-se de uma forma completamente diferente de pensar e de sentir, pois o desejo de punir simplesmente desapareceu. A raiva se transformou em compaixão.

A prática da plena consciência nos torna mais atentos e perspicazes. Esta capacidade de discernimento é fruto da prática que pode nos ajudar a perdoar e a amar. Num período de quinze minutos, ou de meia hora no máximo, a prática da plena consciência, da concentração e do discernimento é capaz de libertar você da raiva, enchendo seu ser de amor.

Quando você entende o sofrimento da outra pessoa, você é capaz de transformar seu desejo de punir, passando apenas a querer ajudá-la. Quando isso acontece, você sabe que sua prática teve êxito. Você é um bom jardineiro.

Dentro de cada um de nós existe um jardim, e cada praticante precisa voltar para dentro de si mesmo e cuidar dele. Talvez no passado você tenha se dado conta disso. Agora, então, precisa saber o que está acontecendo no seu jardim e procurar colocar tudo em ordem. Restaure a beleza e restabeleça a harmonia do seu jardim. Muitas pessoas se encantarão com seu jardim se ele for bem cuidado.

Quando éramos crianças, aprendemos a respirar, a andar, sentar, comer e falar. Fizemos tudo isso instintivamente sem pensar. O que eu proponho agora é que tomemos consciência dos nossos atos para renascermos espiritualmente. Para isso, temos que aprender a respirar de novo, de um modo consciente. Aprender a andar de novo, conscientemente. Aprender a ouvir de novo, com consciência e compaixão. Aprender a falar de novo, com a linguagem do amor, para honrar nosso compromisso original. Dizer a nossa verdade, com respeito e suavidade, e acolher a do outro: "Meu amor, estou sofrendo. Estou com raiva. Quero que você saiba disso".

Esta frase expressa a fidelidade ao nosso compromisso. Meu amor, estou fazendo o melhor que posso. Estou cuidando da minha raiva. Para o meu bem e para o seu. Não quero explodir, destruir a mim e a você. Estou fazendo o melhor que posso." Esta lealdade provocará respeito e confiança na outra pessoa. E finalmente diremos: "Meu amor, preciso da sua ajuda." Esta é uma declaração muito poderosa, porque, quando estamos com raiva, geralmente temos a tendência de dizer: "Não preciso de você, não quero te ver pela frente." Se você puder dizer as três frases anteriores com sinceridade, do fundo do coração, o outro passará por uma transformação. Não duvide dos efeitos dessa prática.

Com o seu comportamento, você consegue influenciar a outra pessoa e incentivá-la a começar a praticar. Ela pensará e sentirá: "Meu parceiro está sendo fiel falando a verdade. Ele está de fato tentando fazer o melhor possível. Preciso fazer a mesma coisa." Isso significa que, quando cuidamos bem de nós mesmos, estamos cuidando bem da pessoa que amamos. O amor por nós mesmos é a base da nossa capacidade de amar o outro. Se não cuidamos bem de nós mesmos, se não estamos felizes e tranqüilos, não podemos fazer a felicidade de mais ninguém. Não podemos ajudar nossos seres queridos, não podemos amá-los. Nossa capacidade de amar uma outra pessoa depende totalmente da nossa capacidade de amar e cuidar bem de nós mesmos.

Nossos ferimentos podem ter sido causados pelo nosso pai ou nossa mãe. Eles repassaram o que sofreram quando crianças. Como não sabiam a forma de curar as feridas da infância, eles as transmitiram para nós. Se não soubermos como transformar e curar nossos próprios ferimentos, vamos transmiti-los para nossos filhos e netos. É por isso que temos que voltar à criança ferida que existe dentro de nós para ajudá-la a ficar curada.

Às vezes, essa criança precisa de toda a nossa atenção. Ela pode emergir das profundezas da nossa consciência pedindo atenção. Se você estiver consciente, ouvirá a voz dela pedindo ajuda. Quando isso acontece, é hora de desligar-se de tudo em torno e voltar-se para dentro, acolhendo e abraçando carinhosamente a criança ferida dentro de você. Respire conscientemente dizendo: "Ao inspirar o ar, volto-me para minha criança ferida; ao soltar o ar, cuido amorosamente da minha criança ferida." Você precisa praticar e se voltar para a sua criança ferida todos os dias, abraçando-a com carinho, falando com ela. E você também pode escrever uma carta para ela dizendo que reconhece sua presença e fará tudo que estiver ao seu alcance para curar seus ferimentos.

Quando eu falo que é preciso ouvir com compaixão, talvez vocês pensem que se trata apenas de escutar uma outra pessoa. Mas também precisamos escutar a criança ferida dentro de nós, pois ela está continuamente conosco. E nós podemos curá-la a cada instante, neste exato instante. "Minha querida criança ferida, estou aqui do seu lado e desejo intensamente ouvir você. Por favor, conte-me tudo sobre seu sofrimento, descreva toda a sua dor. Estou aqui, estou realmente escutando." Se você conseguir fazer isso e ouvi-la dessa maneira durante cinco ou dez minutos todos os dias, a cura certamente acontecerá. Quando subir uma bela montanha, convide sua criança interior para acompanhar você. Quando contemplar a beleza de um pôr-do-sol, convide-a para compartilhá-lo com você. Se fizer isso durante algumas semanas ou meses, sua criança ferida ficará curada. A plena consciência é a energia que pode nos ajudar a realizar essa cura.

Um minuto de prática é um minuto em que geramos a energia da plena consciência. Ela não vem de fora e sim de dentro de nós. A energia da plena consciência é a energia que nos ajuda a estar totalmente presentes no aqui e agora. Quando você toma chá com plena consciência, seu corpo e sua mente desfrutam uma perfeita união. Você é real e o chá que bebe também se torna real. Quando sua cabeça está cheia de projetos e preocupações, você não está realmente tomando seu café ou seu chá. Você está bebendo seus projetos e suas preocupações. Você não é real, nem o café ou o chá são verdadeiros. Seu chá ou seu café só podem se revelar como uma realidade total quando você se voltar para o seu eu e estiver plenamente presente, libertando-se do passado, do futuro e das preocupações. Quando você tem consciência de si e do seu momento presente, o chá também se torna real e o encontro entre você e o chá é real.

Existe a meditação do chá que oferece a você e seus amigos a oportunidade de se exercitarem na prática de estar realmente presentes, concentrando-se na xícara de chá e gozando plenamente tudo o que ela tem a oferecer sabor, perfume, calor. Concentrando-se e usufruindo a companhia uns dos outros. A meditação do chá é uma prática destinada a nos libertar. Se você ainda sofre as limitações e perseguições do passado, se ainda tem medo do futuro, se se deixa levar pela ansiedade e pela raiva, você não é uma pessoa livre. Não está totalmente presente no aqui e agora, de modo que a vida não está disponível para você. O chá, a outra pessoa, o céu azul, a flor não estão à sua disposição. Para que você possa realmente viver, para que consiga tocar profundamente a vida, você precisa ser livre. Cultivar a plena consciência ajuda você a se libertar.

A energia da plena consciência é a energia de estar presente. Corpo e mente unidos. Quando pratica a respiração consciente ou o andar consciente, você se liberta do passado, do futuro, dos seus projetos, das suas preocupações, e passa a estar presente e a viver totalmente. A liberdade é a condição fundamental para você tocar a vida, tocar o azul do céu, as árvores, os pássaros, o chá e a outra pessoa. É por isso que a prática da plena consciência é tão importante. E não pense que você precisa treinar durante muitos meses para conseguir fazer. Uma hora de prática por dia ajuda a ser mais consciente.

Exercite-se tomando conscientemente seu chá, seu café, saboreando o gosto, aspirando o perfume, sentindo na mão o calor da xícara, e, durante esse processo, transforme-se numa pessoa livre. Exercite-se para se tornar uma pessoa livre enquanto prepara o café da manhã, ao tomar banho, ao vestir-se. Quando andar pela rua, quando arrumar a casa. Ao acordar, em vez de deixar-se assaltar pelas preocupações, sinta e usufrua a maciez dos lençóis, perceba a claridade que entra pela janela. Qualquer momento do dia é uma oportunidade para você exercitar a plena consciência e gerar essa energia.

"Meu amor, sei que você está aqui e me sinto muito feliz". Através da plena consciência, você é capaz de tomar profundo contato com o que existe no momento presente, inclusive com a pessoa que você ama. O fato de conseguir dizer ao seu ente querido "Meu amor, sei que você está aqui e me sinto muito feliz" demonstra que você é uma pessoa livre. Prova que você tem a mente atenta, que possui a capacidade de valorizar e apreciar o que está acontecendo no momento presente. O que acontece no agora é a vida que pulsa em seu ser e na pessoa que você ama, e que está viva, diante de você.

Quando você abraça a outra pessoa com a energia da plena consciência, olhando para ela e dizendo "Meu amor, acho maravilhoso você estar aqui ao meu lado. Isso me deixa muito feliz", isso causa a sua felicidade e a felicidade do outro, porque ele sente como é real o sentimento que você expressa. É diferente de abraçar automaticamente, dizendo palavras convencionais que não vêm da plena consciência da presença do outro e do valor dessa presença. Quando conseguimos estar plenamente com o outro, a possibilidade de ficarmos com raiva é muito menor. Quando se zangar ou sentir raiva, respire ou ande conscientemente durante dois minutos para se restabelecer no aqui e agora, para viver de novo. A outra pessoa pode estar dominada por preocupações, raiva e ansiedade, mas você pode salvá-la, e salvar-se, através da plena consciência.

(Do livro “Aprendendo a lidar com a raiva” de Thich Nhat Hanh)

quarta-feira, 27 de março de 2013

Ensinamentos: Dimensões da Espiritualidade


S.S o Dalai Lama

Irmãos e irmãs, gostaria de falar sobre valores espirituais definindo dois níveis de espiritualidade. Como seres humanos, nosso objetivo básico é ter uma vida feliz; todos queremos ser felizes. É natural, para nós, buscar a felicidade. Esse é nosso objetivo de vida. A razão é completamente clara: quando perdemos a esperança, o resultado é que nos tornamos deprimidos e talvez até suicidas. Portanto, nossa existência é fortemente enraizada na esperança. Embora não haja garantia de que o futuro chegará, é porque temos esperança que somos capazes de continuar vivendo. Podemos dizer que o propósito de nossa vida, nosso objetivo de vida, é a felicidade.
 
Seres humanos não são produzidos por máquinas. Somos mais do que apenas matéria; temos sentimento e experiência. Por essa razão, somente conforto material não é suficiente. Necessitamos algo mais profundo, o que usualmente chamo de afeição humana, ou compaixão. Com afeição humana, ou compaixão, todas as vantagens materiais que temos à nossa disposição podem ser muito construtivas e produzir bons resultados. Contudo, sem afeição humana, somente vantagens materiais não nos proporcionarão satisfação, nem produzirão qualquer medida de paz mental ou felicidade. De fato, vantagens materiais sem afeição humana podem até mesmo criar problemas adicionais. Portanto, afeição humana, ou compaixão, é a chave para a felicidade humana.
 
O primeiro nível da espiritualidade, para os seres humanos de todos os lugares, é a fé em uma das muitas religiões do mundo. Penso que há um importante papel para cada uma das principais religiões mundiais, mas para que elas façam uma contribuição efetiva em benefício da humanidade do lado religioso, há dois fatores importantes a serem considerados. O primeiro é que praticantes individuais das várias religiões — isto é, nós mesmos — devem praticar sinceramente. Ensinamentos religiosos devem ser uma parte integral de nossas vidas; eles não deveriam estar separados de nossas vidas. Algumas vezes, vamos a uma igreja ou um templo e rezamos uma prece, ou geramos algum tipo de sentimento espiritual e, quando saímos, nada daquele sentimento religioso permanece. Essa não é a forma adequada de praticar. A mensagem religiosa deve estar conosco onde quer que estejamos. Os ensinamentos da nossa religião devem estar presentes em nossas vidas de forma que, quando realmente precisamos ou pedimos bençãos ou força interior, mesmo nessas horas esses ensinamentos estarão lá; eles estarão lá quando passarmos por dificuldades porque estão constantemente presentes. Somente quando a religião torna-se uma parte integral de nossas vidas é que ela pode ser realmente efetiva.
 
Também precisamos experienciar mais profundamente os significados e valores espirituais de nossa própria tradição religiosa — precisamos conhecer esses ensinamentos não só a nível intelectual, mas também, de forma cada vez mais profunda, através de nossa própria experiência. Algumas vezes entendemos diferentes idéias religiosas num nível muito superficial ou intelectual. Sem um sentimento profundo, a eficácia da religião torna-se limitada. Portanto, devemos praticar sinceramente, e a religião deve tornar-se parte de nossas vidas.
 
O segundo fator refere-se mais à interação entre as várias religiões mundiais. Hoje, por causa da crescente mudança tecnológica e a natureza da economia mundial, estamos muito mais dependentes uns dos outros do que antes. Diferentes países e continentes tornaram-se mais intimamente associados uns com os outros. Na realidade, a sobrevivência de uma região do mundo depende da de outras. Portanto, o mundo tornou-se mais próximo, muito mais interdependente. Como conseqüência, há mais interação humana. Sob tais circunstâncias, a idéia de pluralismo entre as religiões mundiais é muito importante. Em tempos passados, quando as comunidades viviam separadas uma das outras e as religiões surgiam num relativo isolamento, a idéia que havia só uma religião era muito útil. Mas agora a situação mudou, e as circunstâncias são inteiramente diferentes. Agora é crucial aceitar o fato de que existem diferentes religiões, e a fim de desenvolver verdadeiro respeito mútuo entre elas é essencial aproximar o contato entre as várias religiões. Esse é o segundo fator que possibilitará as religiões mundiais serem mais eficazes em beneficiar a humanidade.
 
Quando estava no Tibete, eu não tinha contato com pessoas de diferentes crenças religiosas. Assim, minha atitude em relação às outras religiões não era muito positiva. Mas, quando tive a oportunidade de encontrar pessoas de diferentes crenças e aprender com essa experiência e o contato pessoal, minha atitude para com as outras religiões mudou. Compreendi como são úteis para a humanidade e o potencial contributivo de cada uma para um mundo melhor. Há séculos, as religiões vêm dando contribuições maravilhosas para o aprimoramento dos seres humanos, e ainda hoje há um grande número de seguidores do cristianismo, islamismo, judaísmo, budismo, hinduísmo e assim por diante. Milhões de pessoas estão se beneficiando de todas essas religiões.
 
Para dar um exemplo do valor do encontro de diferentes crenças, meus encontros com o falecido Thomas Merton fizeram-me perceber que bonita, maravilhosa pessoa ele era. Noutra ocasião, encontrei-me com um monge católico que viveu vários anos como eremita numa montanha bem atrás do mosteiro de Montserrat, na Espanha. Quando visitei o mosteiro, ele desceu de sua ermida especialmente para falar comigo. O fato de o inglês dele estar pior do que o meu me deu mais coragem de falar com ele! Ficamos cara a cara e perguntei, "Nesses poucos anos, o que você estava fazendo naquela montanha?" Ele olhou-me e respondeu, "Meditação na compaixão, no amor". Quando ele disse estas poucas palavras, entendi a mensagem através dos seus olhos. Realmente desenvolvi verdadeira admiração por ele e por outros como ele. Tais experiências ajudaram a confirmar na minha mente que todas as religiões do mundo têm o potencial para produzir boas pessoas, a despeito das suas diferenças de filosofia e doutrina. Cada tradição religiosa tem sua própria maravilhosa mensagem a transmitir.
 
Do ponto de vista do budismo, por exemplo, o conceito de um criador é ilógico. É difícil para os budistas entenderem esse conceito por causa do modo que eles analisam a causalidade. Contudo, este não é o lugar para discutir questões filosóficas. O ponto importante aqui é que para as pessoas que seguem esses ensinamentos nos quais a crença básica está num criador, esta abordagem é eficaz. De acordo com essas tradições, o ser humano individual é criado por Deus. Além disso, como recentemente aprendi de um dos meus amigos cristãos, eles não aceitam a teoria do renascimento, e assim, não aceitam vidas passadas ou futuras. Acreditam somente nesta vida. Contudo, eles mantêm que esta vida é criada por Deus, pelo criador, e esta idéia desenvolve neles um sentimento de intimidade com Deus. Seu ensinamento mais importante é que, como estamos aqui por desejo de Deus, nosso futuro depende do criador, e porque o criador é considerado supremo e sagrado, devemos amar a Deus, o criador.
 
O que segue-se a isso é o ensinamento que deveríamos amar nossos semelhantes — esta é a mensagem principal aqui. O raciocínio é que se amamos a Deus, devemos amar nossos semelhantes porque eles, como nós, foram criados por Deus. O futuro deles, como o nosso, depende do criador, portanto, sua situação é igual a nossa. Logo, a crença das pessoas que dizem "Ame a Deus" mas não mostram amor verdadeiro para seus semelhantes é questionável. A pessoa que acredita em Deus e no amor a Deus, deve demonstrar a sinceridade de seu amor a Deus através do amor dirigido aos semelhantes. Essa abordagem é muito poderosa, não é?
 
Assim, se examinarmos cada religião por vários ângulos e da mesma maneira — não apenas da nossa posição filosófica mas de vários pontos de vista — não pode haver dúvida de que todas as grandes religiões têm o potencial para melhorar os seres humanos. Isto é óbvio. Através de um contato próximo com pessoas de outras fés, é possível desenvolver uma atitude aberta e de respeito mútuo em relação a outras religiões. Proximidade com diferentes religiões ajuda-me a aprender novas idéias, novas práticas, e novos métodos ou técnicas que posso incorporar à minha própria prática. Da mesma forma, alguns de meus irmãos e irmãs cristãos adotaram certos métodos budistas, como a prática da mente unifocada e as técnicas de desenvolvimento da tolerância, da compaixão e do amor. O benefício é enorme quando praticantes de diferentes religiões se unem para esse tipo de intercâmbio. Além de desenvolverem a harmonia entre si, ganham outras benesses.
 
Políticos e líderes de nações falam com freqüência em "coexistência" e "ação conjunta". Por que não nós, religiosos, também? Acho que é chegada a hora. Em Assis, em 1987, por exemplo, líderes e representantes de várias religiões mundiais se encontraram para orar juntos, embora eu não saiba ao certo se orar é a palavra exata para descrever com acuidade a prática de todas aquelas religiões. Em todo caso, o que importa é que os representantes de várias religiões se reuniram e, conforme suas próprias crenças, rezaram. Isso já está acontecendo e é, creio eu, muito positivo. No entanto, ainda precisamos fazer mais esforços para aumentar a harmonia e a proximidade entre as religiões mundiais, pois sem um tal esforço continuaremos a vivenciar todos esses problemas que dividem a humanidade. Se a religião fosse o único remédio para reduzir o conflito humano, mas se este mesmo remédio se tornasse outra forma de conflito, seria um desastre. Hoje, como no passado, ocorrem conflitos em nome da religião por causa de diferenças religiosas, e acho isso muito triste. Mas, como disse antes, se pensarmos aberta e profundamente compreenderemos que a situação atual é inteiramente diferente do passado. Não estamos mais isolados, mas somos interdependentes. Hoje, portanto, é muito importante entender que um relacionamento íntimo entre as várias religiões é essencial, para que diferentes grupos religiosos possam trabalhar juntos e realizar um esforço comum para o benefício da humanidade. Assim, sinceridade e fé na prática religiosa por um lado, e tolerância e cooperação religiosa por outro, formam este primeiro nível do valor da prática espiritual para a humanidade.
 
O segundo nível da espiritualidade — a compaixão como religião universal — é mais importante que o primeiro porque, não importa quão maravilhosa uma religião possa ser, ainda assim ela é aceita somente por um número limitado de pessoas. A maioria dos cinco ou seis bilhões de seres humanos em nosso planeta provavelmente não pratica religião alguma. De acordo com o seu ambiente familiar, eles poderiam se identificar como pertencentes a um ou outro grupo religioso — "eu sou hindu", "eu sou budista", "eu sou cristão" —, mas realmente a maioria desses indivíduos não é necessariamente praticante de nenhuma crença religiosa. Isto está correto: seguir uma religião ou não é um direito da pessoa como indivíduo. Todos os grandes mestres, como Buda, Mahavira, Jesus Cristo e Maomé falharam em tornar toda a população humana voltada para a espiritualidade. O fato é que ninguém pode fazer iss Se esses não-crentes são chamados de ateus não importa. De fato, para alguns estudiosos ocidentais os budistas também são ateístas, pois não aceitam um criador. Por isso, às vezes, ao descrever estes não-crentes, adiciono a palavra "extremo" e os chamo de não-crentes extremos. Eles não apenas são não-crentes mas também são extremos, presos ao ponto-de-vista de que a espiritualidade não tem valor. Contudo, devemos lembrar que essas pessoas também são uma parte da humanidade e também têm, como todos os seres humanos, o desejo de viver uma vida pacífica e feliz. Este é o ponto importante.
 
Acredito que não há problemas em permanecer não-crente, mas enquanto você fizer parte da humanidade, enquanto você for um ser humano, você precisa de afeição humana, compaixão humana. Este é realmente o ensinamento essencial de todas as tradições religiosas: o ponto crucial é a compaixão ou afeição humana. Sem afeição humana, mesmo crenças religiosas podem tornar-se destrutivas. Assim, a essência, mesmo na religião, é um bom coração. Considero que a afeição humana, ou compaixão, é a religião universal. Crente ou não-crente, todos necessitam de afeição humana e compaixão, porque compaixão nos dá força interior, esperança e paz mental. Assim, ela é indispensável para todos.
 
Examinemos, por exemplo, a utilidade de um bom coração na vida cotidiana. Se estamos de bom humor quando nos levantamos de manhã, com um sentimento caloroso no coração, automaticamente está aberta a nossa porta interior para aquele dia. Mesmo se uma pessoa pouco amistosa aparece, não nos perturbamos, e podemos até dizer a ela alguma coisa simpática. Mas num dia de humor menos positivo, quando nos sentimos irritados, nossa porta interior se fecha automaticamente. O resultado é que, mesmo se encontramos nosso melhor amigo, ficamos pouco à vontade e tensos. Tais situações mostram a diferença que nossa atitude interior faz nas experiências do dia-a-dia. Precisamos, pois, a fim de criar uma atmosfera agradável em nós mesmos, nas nossas famílias e nossas comunidades, compreender que a fonte desse bem-estar está dentro do indivíduo, dentro de cada um de nós — um bom coração, compaixão humana, amor.
 
Uma vez criada uma atmosfera positiva e amistosa, o medo e a insegurança automaticamente diminuem. Assim, podemos facilmente fazer mais amigos e criar mais sorrisos. Afinal de contas, somos animais sociais. Sem amizade humana, sem o sorriso humano, nossa vida torna-se miserável. O sentimento de solidão fica insuportável. É a lei natural, isto é, pela lei natural dependemos dos outros para viver. Se, sob certas circunstâncias, por algo estar errado dentro de nós, nossa atitude para com nossos semelhantes, de quem dependemos, se tornar hostil, como poderemos esperar paz de espírito e uma vida feliz? De acordo com a natureza humana básica, ou lei natural, a afeição — compaixão — é a chave da felicidade. Segundo a medicina contemporânea, um estado mental positivo, ou paz mental, também é benéfico para a saúde física. Logo, mesmo do ponto de vista de nossa saúde, paz e calma mental são cada vez mais importantes. Isso mostra que o próprio corpo físico aprecia e responde à afeição humana, à humana paz de espírito.
 
Se olharmos para a natureza humana básica, veremos que nossa natureza é mais dócil do que agressiva. Se examinarmos vários animais, notaremos que aqueles de natureza mais pacífica têm uma estrutura corporal correspondente, enquanto os predadores têm uma estrutura corporal desenvolvida de acordo com a natureza deles. Compare um tigre com um veado. Há uma grande diferença de estrutura física entre eles. Quando comparamos o nosso próprio corpo com os deles, vemos que somos mais parecidos com os veados e coelhos do que com os tigres. Até os nossos dentes são mais parecidos com os deles, não são? Bem diferentes dos do tigre. Nossas unhas são outro bom exemplo — eu não sou capaz de pegar nem um rato, só com as minhas unhas humanas. Claro, a inteligência humana nos habilita a criar ferramentas e métodos sem os quais seria difícil fazer muito do que fazemos. Como vêem, devido ao nosso estado físico, pertencemos à categoria dos animais dóceis. Acho que é nossa natureza humana fundamental que se mostra em nossa estrutura física básica.
 
Diante da situação global atual, a cooperação é essencial, especialmente em campos como economia e educação. O conceito de que diferenças são importantes está agora mais ou menos ultrapassado, como demonstra o movimento por uma Europa Ocidental unificada. Acho que esse movimento é verdadeiramente maravilhoso e chega em boa hora. Ainda assim, esse trabalho entre as nações não aconteceu por causa de compaixão ou fé religiosa, mas por necessidade. Há uma tendência crescente em direção da conscientização global. Nas atuais circunstâncias, um relacionamento mais íntimo com os outros tornou-se um elemento da nossa própria sobrevivência. Portanto, o conceito de responsabilidade universal baseado na compaixão e num senso de irmandade é essencial. O mundo está cheio de conflitos — por causa de ideologia, de religião ou até entre famílias — baseados em alguém querendo uma coisa e outra pessoa querendo outra coisa. Assim, se examinarmos as fontes de todos esses conflitos, descobriremos muitas fontes, muitas causas, até dentro de nós mesmos.
 
Nesse meio tempo, todavia, temos o potencial e a capacidade de unirmo-nos harmoniosamente. Tudo mais é relativo. Embora haja várias causas de conflito, existem ao mesmo tempo muitas causas para união e harmonia. Chegou a hora de pôr mais ênfase na união. Também aqui, há que haver afeição humana. Por exemplo, você pode ter uma opinião ideológica ou religiosa diferente da de outra pessoa. Se você respeitar o direito da outra pessoa e mostrar sinceramente uma atitude compassiva para com ela, então não importa se a idéia dela lhe serve, isso é secundário. Enquanto a outra pessoa acreditar, enquanto puder se beneficiar de tal ponto de vista, ela estará em seu absoluto direito. Então, precisamos respeitar e aceitar o fato de que existem diferentes pontos de vista. No campo da economia dá-se o mesmo: nossos competidores devem obter algum lucro, pois eles também precisam sobreviver. Quando temos uma visão mais ampla baseada na compaixão, creio que tudo se torna mais fácil. Compaixão, mais uma vez, é o fator-chave.
 
Os conflitos mundiais estão hoje consideravelmente menos tensos. Felizmente, agora podemos pensar e falar seriamente sobre desmilitarização. Cinco anos atrás isso seria difícil, mas hoje a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a ex-União Soviética acabou. Aos meus amigos americanos eu sempre digo: A força de vocês não vem das armas nucleares, mas dos nobres ideais de democracia e liberdade dos seus antepassados. Quando estive nos Estados Unidos em 1991, pude encontrar o ex-presidente George Bush. Na ocasião, falávamos sobre a nova ordem mundial e eu lhe disse: Uma nova ordem mundial com compaixão é ótimo. Sem compaixão, não tenho certeza.
 
Creio que é um bom momento para pensarmos e falarmos sobre desmilitarização. Já há sinais de redução armamentícia e, pela primeira vez, de desnuclearização. Passo a passo, vamos vendo uma diminuição de armas. Penso que nossa meta deveria ser a de livrar o mundo — nosso pequeno planeta s das armas. Isso não quer dizer, porém, que devamos abolir todo tipo de armas. Talvez seja preciso guardar algumas, pois há sempre algumas pessoas e grupos criando confusão entre nós. Por precaução, e para nos resguardarmos desses focos, poderíamos criar um sistema internacional de forças policiais monitoradas regionalmente, que não pertençam a nenhum país mas sejam controladas coletivamente e supervisionadas por uma organização internacional, como as Nações Unidas. Sem armas disponíveis, não haveria perigo de conflito militar entre as nações, nem haveria guerras civis.
 
A guerra continua sendo, para nossa tristeza, parte da história humana, mas acho que chegou a hora de mudar os conceitos que levam à guerra. Certas pessoas acham gloriosa a guerra, e que através dela podem se tornar heróis. Essa atitude comum em relação à guerra é muito errada. Um entrevistador me disse, um desses dias, que os ocidentais têm muito medo da morte, mas que os orientais a temem pouco. Eu lhe respondi, em tom de brincadeira, que para a mentalidade ocidental, a guerra e a instituição militar parecem extremamente importantes. Guerra significa morte — provocada, e não por causas naturais. Assim, são vocês, ocidentais, que não temem a morte, porque gostam tanto da guerra. Nós, orientais, principalmente nós, tibetanos, não podemos nem pensar em guerra; lutar, para nós, está fora de cogitação porque o resultado inevitável da guerra é o desastre: morte, ferimentos e miséria. Portanto, o conceito de guerra para nós é extremamente negativo. Isso quer dizer que, na realidade, temos mais medo da morte do que vocês, você não acha?
 
Infelizmente, alguns fatores fazem que nossas idéias sobre a guerra sejam muito incorretas. É hora, portanto, de pensar seriamente sobre desmilitarização. Eu senti isso profundamente, durante e depois da crise do Golfo Pérsico. Claro, todos culparam Sadam Hussein, e não há dúvida de que Sadam Hussein é negativo — ele errou de muitas maneiras. Afinal, ele é um ditador, e ditadores são obviamente negativos. No entanto, sem sua organização militar, sem suas armas, Hussein não seria aquele tipo de ditador. Quem lhe forneceu as armas? Os fornecedores também têm responsabilidade. Alguns países ocidentais lhe forneceram armas sem medir as conseqüências.
 
Pensar apenas em dinheiro, em lucrar vendendo armas, é realmente horrível. Certa vez, encontrei uma francesa que passara muitos anos em Beirute, no Líbano. Ela me disse, com grande tristeza, que durante a crise em Beirute havia gente de um lado da cidade ganhando dinheiro com a venda de armas, enquanto do outro lado, no mesmo dia, havia gente inocente sendo morta pelas mesmas armas. Da mesma forma, de um lado do planeta há pessoas vivendo suntuosamente com o lucro auferido da venda de armas, enquanto pessoas inocentes morrem do outro lado do planeta, vítimas daquelas balas sofisticadas. O primeiro passo, portanto, é parar a venda de armas. às vezes eu brinco com meus amigos suecos: Vocês são mesmo maravilhosos. Mantiveram a neutralidade durante o último conflito e sempre consideram a importância dos direitos humanos e da paz mundial. ótimo. Mas, nesse meio tempo, estão vendendo muitas armas. Há uma pequena contradição aí, não há?
 
Assim, desde a crise do Golfo Pérsico, prometi a mim mesmo que pelo resto da minha vida contribuirei para avançar a idéia da desmilitarização. No que diz respeito ao meu país, já resolvi que, futuramente, o Tibete deverá ser uma zona totalmente desmilitarizada. Mais uma vez, para tornar a desmilitarização uma realidade, o fator chave é a compaixão.
 
Gostaria de concluir explicando melhor o significado de compaixão, que freqüentemente é mal entendido. Compaixão verdadeira não está baseada em nossas próprias projeções e expectativas, mas sim nos direitos do outro: independentemente da outra pessoa ser um amigo íntimo ou um inimigo, contanto que ela deseje paz e felicidade e deseje superar o sofrimento, então, baseado nisso, desenvolvemos respeito verdadeiro para com seus problemas. Isso é compaixão verdadeira.
 
Em geral, chamamos qualquer preocupação com um amigo próximo de compaixão. Isso não é compaixão, é apego. Nem casamentos duram por apego, embora o apego geralmente esteja presente. Eles duram porque também há compaixão. Se os casamentos duram pouco, é por perda de compaixão; só há apego emocional baseado em projeção e expectativa. Quando o único vínculo entre amigos íntimos é o apego, mesmo uma questão menor pode causar uma mudança nas projeções. Assim que nossa projeção muda, o apego desaparece — porque o apego estava baseado unicamente na projeção e expectativa.
 
É possível ter compaixão sem apego — e similarmente, ter cólera sem ódio. Portanto, precisamos esclarecer as diferenças entre compaixão e apego, e entre cólera e ódio. Tal clareza é útil em nossa vida diária e em nossos esforços para a paz mundial. Considero esses valores espirituais como básicos para a felicidade de todos os seres humanos, tanto do crente quanto do não crente.
 
Ensinamento dado em Melbourne, Austrália, no National Tennis Centre, em 4 de maio de 1992 e publicado em Dimensions of Spirituality, Wisdom Publicaions, 1995. Tradução de Bruno D'Avanzo do Centro de Estudos Budistas Paramitta (Curitiba - PR), em sua visita ao CEBB em julho 1996, e de José Fonseca do CEB-Bodisatva (Porto Alegre - RS).

segunda-feira, 18 de março de 2013

Poema: Uma nuvem, um pássaro



Ao meditar apenas observo

Uma nuvem, um pássaro

Pensamentos...

Eles vem e vão

Eu permaneço...

Com o tempo

Todos se esvaziam

Não eu, nem nuvens, nem pássaros

Cessam os sons...

Tudo se acalma

A montanha se cala

O orvalho se deita

Reconheço o verde em mim

Respiro...

O mundo girou como roda

Os pássaros se aconchegaram em seus ninhos

As nuvens seguiram seus caminhos

O vento fez curva, no curso do rio

O seixo gostou.

(Autor: Ivan Deus Ribas)

quarta-feira, 13 de março de 2013

O grande silêncio e a paz interior



Prof. Fernando Altemeyer Júnior

O Grande Silêncio é o nome de um documentário de 160 minutos, lançado em 2005, que retrata a vida da comunidade dos monges cartuxos em Isère, França, produzido por Phillipe Gröning. É uma meditação silenciosa sobre a vida monástica. Sem música à exceção dos cânticos do mosteiro, sem entrevistas ou quaisquer comentários. Evoca a passagem do tempo, das estações, o dia dos monges e as orações. É um filme sobre a presença do absoluto na vida de homens que dedicam a sua existência a Deus, no grande silêncio. O próprio cineasta diz que saiu mudado depois dos seis meses vividos no mosteiro. Que acontece quando mergulhamos no silêncio? O que muda em nós?

O silêncio como experiência e lugar de encontro é algo de revolucionário, e nunca reacionário. É preciso silenciar para ouvir. É preciso silenciar para recuperar a saúde física e mental. O mundo anda doente, pois vive um exagero de decibéis que ensurdecem e atordoam. Apatia ou resignação são os sinais da alienação de onde estamos e de quem somos. Isso tudo é fruto do barulho e da dispersão. A pessoa silenciosa ou taciturna é alguém que está além ou aquém das palavras. Tem um fio de prumo sobre sua cabeça. É alguém que vive em paz e transmite paz em palavras e atitudes. Dizem os árabes em um famoso ditado: "não abra a boca se o que tens a dizer não for mais belo que o silêncio". Essa é a mesma percepção de São Bento ao afirmar em sua Regra aos monges que: "... raras vezes se deve conceder, até aos discípulos mais perfeitos, licença para entreterem conversações, embora sobre assuntos bons, santos e edificantes, tão importante é o silêncio; porquanto está escrito: Falando muito não evitarás o pecado (Pr 10,19). E em outro lugar: A morte e a vida estão em poder da língua (Pr 18,21) (Regra de São Bento, capítulo VI, O espírito de Silêncio)".

Se lembrarmos das vidas de quatro personagens das religiões, vemos que se apresentaram como homens de Deus vivenciando largos momentos de fecundo silêncio e se puseram a falar o que lhes fora revelado no silêncio. Do judaísmo, Moisés e profetas como Oséias ou Elias fizeram a experiência do silêncio. No mundo islâmico, o profeta Muhammad nas grutas da Arábia Saudita ouve a fala do arcanjo Gabriel. No budismo os mestres espirituais, das escolas da China e do zen-budismo japonês encontraram o caminho da sabedoria. O próprio Jesus Cristo, filho de Deus Altíssimo é um primoroso exemplo de quem soube viver o silêncio em frequentes, longas e profundas experiências de oração, como descritas pelos evangelistas (Lc 6,12; Mt 14,23; Mc 1,35; Jo 17).

O silêncio está vinculado à proximidade do mistério e da intimidade com Deus. As coisas mais íntimas são sempre pronunciadas aos sussurros e murmúrios. Talvez seja por essa razão que o salmista diga na versão hebraica: "O louvor, para Vós, ó Deus, é silêncio (Salmo 65,2)". A louvação mais alta e mais verdadeira acontece quando suprimimos ou esgotamos as palavras. Penetramos o vasto universo do recolhimento interior e da contemplação de tudo o que existe. Nesse lugar e espaço de silêncio é que o Espírito pode fazer ressoar a Palavra Eterna e nos despertar de um sono que nos dispersava ou escondia nossa essência interior e a conexão com Deus.

Um caminho promissor que se abre, depois de um grande silêncio, é o caminho da oração. O monge João Cassiano (360-435) afirma de maneira sucinta: "é perfeita oração aquela onde o que está orando não se lembra de que orando está" ou ainda que a boa oração seja breve e silenciosa e manifeste-se por uma tensão ardente da alma, por um transbordar inefável do coração e por um entusiasmo insaciável do espírito (João Cassiano, Da oração, Vozes, 2008, p. 97). A prece cristã é um movimento interior que se realiza em etapas sucessivas e complementares: em um primeiro momento é sempre uma inspiração advinda do coração e da vida. Depois se torna respiração e conexão com a transcendência feita em um exercício leve e ao mesmo tempo vigoroso. Depois vem a transpiração e a expiração em que nos apresentamos para Deus com nossos anseios, dificuldades, necessidades e palavras para enfim atingirmos o ápice do caminho que é a surpresa que emudece e extasia. Nesse momento ouvimos as melodias celestes e os sons inefáveis que plenificam e reverberam em nosso coração e em nossa vida.

A oração cristã parte e nos leva ao silêncio. Santo Agostinho dizia que a oração é puro silêncio (Santo Agostinho, O Mestre XII, 39). Não é posse de Deus, mas um estar em Cristo para viver no seu Espírito e segundo as suas palavras. A oração cristã é a fé que fala. Não é um estar em si somente, embora necessite de um momento introspectivo. Não é um estilo meditativo, ainda que não se realize sem um caráter reflexivo e atento aos sinais que nos chegam pelos sentidos e pelo corpo. Não é só intelectual e cerebral, ainda que não possamos dizer que se reduza ao irracional ou inconsciente. Passa por momentos de duvidas e de incertezas, vividos como aridez e ausência de iluminação. É necessário que aconteça a abertura para a fidelidade que confia na esperança. E esse portal pessoal poderá abrir-nos ao Outro, aos outros e à natureza.

O silêncio é um estado de espírito bem como uma profunda atividade de amor. Caminhar de forma progressiva na escola do silêncio pede que estejamos sintonizados com Deus e sua revelação. Esse percurso é difícil, mas realizável. Foi chamado pelos místicos como o ascetismo do silêncio. Existem obstáculos no caminho que devem ser identificados. Estão fora e dentro de cada um de nós. Os obstáculos externos são aqueles superficiais que nos desviam do reto caminho. São como ruídos que prejudicam o foco e a comunicação verdadeira. Distraem e enervam, levando-nos ao estresse ou à repressão de medos e fantasmas. Exigem um olhar arguto e persistência mesmo depois de quedas. Os internos são aqueles obscuros e muitas vezes desconhecidos. É preciso contar com a graça de Deus para enfrentá-los e resistir. Exigem conversão e misericórdia, pois o silêncio interior favorece a comunicação e sua identidade veraz. Vencidos os obstáculos podemos penetrar em um estado agudo de felicidade, tal como o silêncio foi definido por Clarice Lispector. Dizia a poetisa: "Há um silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras".

A Igreja cristã sempre cultivou o silêncio e faz recomendações constantes para que cuidemos dele em nossas celebrações e na vida cotidiana de nossos fieis. Assim a introdução geral da Liturgia das Horas proposta pelo Papa Paulo VI, em 01/11/1970 orienta que: "Nas ações litúrgicas deve-se procurar em geral que se guarde também, há seu tempo, um silêncio sagrado (SC 30); por isso, haja ocasião de silêncio também na celebração da Liturgia das Horas. Por conseguinte, se parecer oportuno e prudente, para facilitar a plena ressonância da voz do Espírito Santo nos corações e unir mais estreitamente a oração pessoal com a Palavra de Deus e com a voz pública da Igreja, pode-se intercalar uma pausa de silêncio, após cada salmo, depois de repetida sua antífona, de acordo com antiga tradição, sobretudo se depois do silêncio se acrescentar a coleta do salmo; ou também após as leituras tanto breves como longas, antes ou depois do responsório (Liturgia das Horas, CNBB, 1984, n. 201 e 202, p.56)".

O silêncio sempre foi muito apreciado pelos monges cenobitas ou pelos anacoretas (eremitas), não porque tivesse valor em si mesmo, mas porque permite uma abertura para a plenitude que se esconde por detrás das palavras. O silêncio amado e buscado pelos monges e pelos místicos é feito de preparação e de expectativa. É um reconhecimento explícito de que somos incapazes de falar sobre o que é fundamental ou dramático. O povo simples sempre diz quando está diante de uma grande felicidade ou diante de uma grande perda ou fraqueza: não tenho palavras para explicar ou dizer. Quando alguém fala de algo que mudou sua vida fala das espumas, mas nunca das correntes submarinas. Fala do que sentiu, mas pouco pode dizer do que de fato viveu. O não dito é muito mais poderoso que a palavra. Assim quando precisamos estar com alguém que tem uma grande dor, as palavras desvanecem e se atrofiam. O melhor é calar para compreender. O silêncio, nestes momentos, exprime melhor a adoração, o abandono e o fascinante que cada ser humano busca ardentemente. E nesta "noite do Espírito", que é hora de amor, decisiva e irrevogável, perceberemos que não fomos nem seremos abandonados. Descobriremos que "depois da hora do meu amor, envolta no Vosso silêncio, chegará o dia do Vosso amor, a visão beatífica. Por consequência, agora que não sei quando chegará a minha hora, nem sequer se ela já começou, preciso esperar no limiar do Vosso santuário e do meu; preciso libertar este lugar dos ruídos do mundo (Karl Rahner, Apelos ao Deus do silêncio, Lisboa: Ed. Paulistas, 1968, p. 40)".

Em todos os povos e culturas o tema do silêncio como porta para Deus, se fez presente. O poeta, músico e filosofo indiano Rabindranath Tagore (1861-1941), ganhador do prêmio Nobel da literatura em 1913, tornou-se mundialmente famoso por seu livro Oferenda Lírica. Nele temos um belo poema sobre o silêncio que preenche o coração: "Se não falas, como vou encher o meu coração com o teu silêncio, e aguentá-lo. Ficarei quieto, esperando, como a noite em sua vigília estrelada, com a cabeça pacientemente inclinada. A manhã certamente virá, a escuridão se dissipará, e a tua voz se derramará em torrentes douradas por todo o céu. Então as tuas palavras voarão em canções de cada ninho dos meus pássaros e as tuas melodias brotarão em flores por todos os recantos da minha floresta (Gitanjali, Paulus, 1991, p. 19)".

Os monges do Oriente propuseram um caminho de oração fascinante chamado de hesicasmo, que é um estado de silêncio orante. O hesicasta é alguém que vive um estado de silêncio interior acompanhado pela memória constante de Deus. Isso exigirá uma qualidade fundamental que é a pureza de coração (Como água na fonte, Monges beneditinos camaldolenses, Loyola, 2009, p.187). Um dos maiores místicos da Igreja grega, São Simeão, o novo teólogo (949-1022) do mosteiro de Mamas, recomendava: "Sente-se sozinho e em silêncio. Incline a cabeça, feche os olhos, respire suavemente e imagine que está olhando para dentro do seu coração. Faça sua mente, ou seja, seus pensamentos, passar da sua cabeça ao seu coração. Respire e diga: Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim! Pronuncie essas palavras em voz baixa, movendo suavemente os lábios, ou pronuncie-as, simplesmente, em espírito. Tente afastar todos os outros pensamentos. Esteja tranquilo, seja paciente e repita essa frase tanto quanto puder (Relatos de um peregrino russo, Vozes, 2008, p. 42)".

Uma religiosa carmelita de Paris, irmã Maria-Amada de Jesus (1839-1874), compreendeu claramente o papel central que o silêncio interior deve exercer em nossas vidas para a vida feliz e íntegra. Ela dizia que a vida interior pode ser resumida em uma só palavra: silêncio! E ainda falar pouco às criaturas e muito a Deus, pois o silêncio com Ele é um silêncio da eternidade, da plena união da alma com Deus. Ela divide os degraus dessa subida espiritual em doze, que podem ser comparados aos dozes graus de humildade da regra de São Bento. Aqui estão esses passos pedagógicos de uma vida silenciosa: 1. Silêncio das palavras; 2. Silêncio de movimentos ou ações; 3. Silêncio da imaginação; 4. Silêncio da memória; 5. Silêncio diante das criaturas; 6. Silêncio do coração e dos sentimentos; 7. Silêncio da humildade ou do amor-próprio; 8. Silêncio da inteligência; 9. Silêncio do julgamento; 10. Silêncio da vontade; 11. Silêncio consigo mesmo; 12. Silêncio com Deus!

Cultivando o grande silêncio ouviremos o vento tocando rochedos, o mar atingindo a praia, pássaros cantando maviosas melodias, crianças balbuciando, amigos celebrando, pobres pedindo amor, doentes sofrendo, florestas crescendo e, sobretudo seremos capazes de auscultar a voz interior proclamando que o amor de Deus existe em nós, suave e inefável. Na voz da monja Maria-Amada de Jesus, poderemos então dizer: "Eu sou semelhante a um pequeno grão de areia, que espera na praia a onda que o fará mergulhar no oceano".


O Grande Silêncio é o nome de um documentário de 160 minutos, lançado em 2005, que retrata a vida da comunidade dos monges cartuxos em Isère, França, produzido por Phillipe Gröning. É uma meditação silenciosa sobre a vida monástica. Sem música à exceção dos cânticos do mosteiro, sem entrevistas ou quaisquer comentários. Evoca a passagem do tempo, das estações, o dia dos monges e as orações. É um filme sobre a presença do absoluto na vida de homens que dedicam a sua existência a Deus, no grande silêncio. O próprio cineasta diz que saiu mudado depois dos seis meses vividos no mosteiro. Que acontece quando mergulhamos no silêncio? O que muda em nós?`

O silêncio como experiência e lugar de encontro é algo de revolucionário, e nunca reacionário. É preciso silenciar para ouvir. É preciso silenciar para recuperar a saúde física e mental. O mundo anda doente, pois vive um exagero de decibéis que ensurdecem e atordoam. Apatia ou resignação são os sinais da alienação de onde estamos e de quem somos. Isso tudo é fruto do barulho e da dispersão. A pessoa silenciosa ou taciturna é alguém que está além ou aquém das palavras. Tem um fio de prumo sobre sua cabeça. É alguém que vive em paz e transmite paz em palavras e atitudes. Dizem os árabes em um famoso ditado: "não abra a boca se o que tens a dizer não for mais belo que o silêncio". Essa é a mesma percepção de São Bento ao afirmar em sua Regra aos monges que: "... raras vezes se deve conceder, até aos discípulos mais perfeitos, licença para entreterem conversações, embora sobre assuntos bons, santos e edificantes, tão importante é o silêncio; porquanto está escrito: Falando muito não evitarás o pecado (Pr 10,19). E em outro lugar: A morte e a vida estão em poder da língua (Pr 18,21) (Regra de São Bento, capítulo VI, O espírito de Silêncio)".

Se lembrarmos das vidas de quatro personagens das religiões, vemos que se apresentaram como homens de Deus vivenciando largos momentos de fecundo silêncio e se puseram a falar o que lhes fora revelado no silêncio. Do judaísmo, Moisés e profetas como Oséias ou Elias fizeram a experiência do silêncio. No mundo islâmico, o profeta Muhammad nas grutas da Arábia Saudita ouve a fala do arcanjo Gabriel. No budismo os mestres espirituais, das escolas da China e do zen-budismo japonês encontraram o caminho da sabedoria. O próprio Jesus Cristo, filho de Deus Altíssimo é um primoroso exemplo de quem soube viver o silêncio em frequentes, longas e profundas experiências de oração, como descritas pelos evangelistas (Lc 6,12; Mt 14,23; Mc 1,35; Jo 17).

O silêncio está vinculado à proximidade do mistério e da intimidade com Deus. As coisas mais íntimas são sempre pronunciadas aos sussurros e murmúrios. Talvez seja por essa razão que o salmista diga na versão hebraica: "O louvor, para Vós, ó Deus, é silêncio (Salmo 65,2)". A louvação mais alta e mais verdadeira acontece quando suprimimos ou esgotamos as palavras. Penetramos o vasto universo do recolhimento interior e da contemplação de tudo o que existe. Nesse lugar e espaço de silêncio é que o Espírito pode fazer ressoar a Palavra Eterna e nos despertar de um sono que nos dispersava ou escondia nossa essência interior e a conexão com Deus.

Um caminho promissor que se abre, depois de um grande silêncio, é o caminho da oração. O monge João Cassiano (360-435) afirma de maneira sucinta: "é perfeita oração aquela onde o que está orando não se lembra de que orando está" ou ainda que a boa oração seja breve e silenciosa e manifeste-se por uma tensão ardente da alma, por um transbordar inefável do coração e por um entusiasmo insaciável do espírito (João Cassiano, Da oração, Vozes, 2008, p. 97). A prece cristã é um movimento interior que se realiza em etapas sucessivas e complementares: em um primeiro momento é sempre uma inspiração advinda do coração e da vida. Depois se torna respiração e conexão com a transcendência feita em um exercício leve e ao mesmo tempo vigoroso. Depois vem a transpiração e a expiração em que nos apresentamos para Deus com nossos anseios, dificuldades, necessidades e palavras para enfim atingirmos o ápice do caminho que é a surpresa que emudece e extasia. Nesse momento ouvimos as melodias celestes e os sons inefáveis que plenificam e reverberam em nosso coração e em nossa vida.

A oração cristã parte e nos leva ao silêncio. Santo Agostinho dizia que a oração é puro silêncio (Santo Agostinho, O Mestre XII, 39). Não é posse de Deus, mas um estar em Cristo para viver no seu Espírito e segundo as suas palavras. A oração cristã é a fé que fala. Não é um estar em si somente, embora necessite de um momento introspectivo. Não é um estilo meditativo, ainda que não se realize sem um caráter reflexivo e atento aos sinais que nos chegam pelos sentidos e pelo corpo. Não é só intelectual e cerebral, ainda que não possamos dizer que se reduza ao irracional ou inconsciente. Passa por momentos de duvidas e de incertezas, vividos como aridez e ausência de iluminação. É necessário que aconteça a abertura para a fidelidade que confia na esperança. E esse portal pessoal poderá abrir-nos ao Outro, aos outros e à natureza.

O silêncio é um estado de espírito bem como uma profunda atividade de amor. Caminhar de forma progressiva na escola do silêncio pede que estejamos sintonizados com Deus e sua revelação. Esse percurso é difícil, mas realizável. Foi chamado pelos místicos como o ascetismo do silêncio. Existem obstáculos no caminho que devem ser identificados. Estão fora e dentro de cada um de nós. Os obstáculos externos são aqueles superficiais que nos desviam do reto caminho. São como ruídos que prejudicam o foco e a comunicação verdadeira. Distraem e enervam, levando-nos ao estresse ou à repressão de medos e fantasmas. Exigem um olhar arguto e persistência mesmo depois de quedas. Os internos são aqueles obscuros e muitas vezes desconhecidos. É preciso contar com a graça de Deus para enfrentá-los e resistir. Exigem conversão e misericórdia, pois o silêncio interior favorece a comunicação e sua identidade veraz. Vencidos os obstáculos podemos penetrar em um estado agudo de felicidade, tal como o silêncio foi definido por Clarice Lispector. Dizia a poetisa: "Há um silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras".

A Igreja cristã sempre cultivou o silêncio e faz recomendações constantes para que cuidemos dele em nossas celebrações e na vida cotidiana de nossos fieis. Assim a introdução geral da Liturgia das Horas proposta pelo Papa Paulo VI, em 01/11/1970 orienta que: "Nas ações litúrgicas deve-se procurar em geral que se guarde também, há seu tempo, um silêncio sagrado (SC 30); por isso, haja ocasião de silêncio também na celebração da Liturgia das Horas. Por conseguinte, se parecer oportuno e prudente, para facilitar a plena ressonância da voz do Espírito Santo nos corações e unir mais estreitamente a oração pessoal com a Palavra de Deus e com a voz pública da Igreja, pode-se intercalar uma pausa de silêncio, após cada salmo, depois de repetida sua antífona, de acordo com antiga tradição, sobretudo se depois do silêncio se acrescentar a coleta do salmo; ou também após as leituras tanto breves como longas, antes ou depois do responsório (Liturgia das Horas, CNBB, 1984, n. 201 e 202, p.56)".

O silêncio sempre foi muito apreciado pelos monges cenobitas ou pelos anacoretas (eremitas), não porque tivesse valor em si mesmo, mas porque permite uma abertura para a plenitude que se esconde por detrás das palavras. O silêncio amado e buscado pelos monges e pelos místicos é feito de preparação e de expectativa. É um reconhecimento explícito de que somos incapazes de falar sobre o que é fundamental ou dramático. O povo simples sempre diz quando está diante de uma grande felicidade ou diante de uma grande perda ou fraqueza: não tenho palavras para explicar ou dizer. Quando alguém fala de algo que mudou sua vida fala das espumas, mas nunca das correntes submarinas. Fala do que sentiu, mas pouco pode dizer do que de fato viveu. O não dito é muito mais poderoso que a palavra. Assim quando precisamos estar com alguém que tem uma grande dor, as palavras desvanecem e se atrofiam. O melhor é calar para compreender. O silêncio, nestes momentos, exprime melhor a adoração, o abandono e o fascinante que cada ser humano busca ardentemente. E nesta "noite do Espírito", que é hora de amor, decisiva e irrevogável, perceberemos que não fomos nem seremos abandonados. Descobriremos que "depois da hora do meu amor, envolta no Vosso silêncio, chegará o dia do Vosso amor, a visão beatífica. Por consequência, agora que não sei quando chegará a minha hora, nem sequer se ela já começou, preciso esperar no limiar do Vosso santuário e do meu; preciso libertar este lugar dos ruídos do mundo (Karl Rahner, Apelos ao Deus do silêncio, Lisboa: Ed. Paulistas, 1968, p. 40)".

Em todos os povos e culturas o tema do silêncio como porta para Deus, se fez presente. O poeta, músico e filosofo indiano Rabindranath Tagore (1861-1941), ganhador do prêmio Nobel da literatura em 1913, tornou-se mundialmente famoso por seu livro Oferenda Lírica. Nele temos um belo poema sobre o silêncio que preenche o coração: "Se não falas, como vou encher o meu coração com o teu silêncio, e aguentá-lo. Ficarei quieto, esperando, como a noite em sua vigília estrelada, com a cabeça pacientemente inclinada. A manhã certamente virá, a escuridão se dissipará, e a tua voz se derramará em torrentes douradas por todo o céu. Então as tuas palavras voarão em canções de cada ninho dos meus pássaros e as tuas melodias brotarão em flores por todos os recantos da minha floresta (Gitanjali, Paulus, 1991, p. 19)".

Os monges do Oriente propuseram um caminho de oração fascinante chamado de hesicasmo, que é um estado de silêncio orante. O hesicasta é alguém que vive um estado de silêncio interior acompanhado pela memória constante de Deus. Isso exigirá uma qualidade fundamental que é a pureza de coração (Como água na fonte, Monges beneditinos camaldolenses, Loyola, 2009, p.187). Um dos maiores místicos da Igreja grega, São Simeão, o novo teólogo (949-1022) do mosteiro de Mamas, recomendava: "Sente-se sozinho e em silêncio. Incline a cabeça, feche os olhos, respire suavemente e imagine que está olhando para dentro do seu coração. Faça sua mente, ou seja, seus pensamentos, passar da sua cabeça ao seu coração. Respire e diga: Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim! Pronuncie essas palavras em voz baixa, movendo suavemente os lábios, ou pronuncie-as, simplesmente, em espírito. Tente afastar todos os outros pensamentos. Esteja tranquilo, seja paciente e repita essa frase tanto quanto puder (Relatos de um peregrino russo, Vozes, 2008, p. 42)".

Uma religiosa carmelita de Paris, irmã Maria-Amada de Jesus (1839-1874), compreendeu claramente o papel central que o silêncio interior deve exercer em nossas vidas para a vida feliz e íntegra. Ela dizia que a vida interior pode ser resumida em uma só palavra: silêncio! E ainda falar pouco às criaturas e muito a Deus, pois o silêncio com Ele é um silêncio da eternidade, da plena união da alma com Deus. Ela divide os degraus dessa subida espiritual em doze, que podem ser comparados aos dozes graus de humildade da regra de São Bento. Aqui estão esses passos pedagógicos de uma vida silenciosa: 1. Silêncio das palavras; 2. Silêncio de movimentos ou ações; 3. Silêncio da imaginação; 4. Silêncio da memória; 5. Silêncio diante das criaturas; 6. Silêncio do coração e dos sentimentos; 7. Silêncio da humildade ou do amor-próprio; 8. Silêncio da inteligência; 9. Silêncio do julgamento; 10. Silêncio da vontade; 11. Silêncio consigo mesmo; 12. Silêncio com Deus!

Cultivando o grande silêncio ouviremos o vento tocando rochedos, o mar atingindo a praia, pássaros cantando maviosas melodias, crianças balbuciando, amigos celebrando, pobres pedindo amor, doentes sofrendo, florestas crescendo e, sobretudo seremos capazes de auscultar a voz interior proclamando que o amor de Deus existe em nós, suave e inefável. Na voz da monja Maria-Amada de Jesus, poderemos então dizer: "Eu sou semelhante a um pequeno grão de areia, que espera na praia a onda que o fará mergulhar no oceano".

Texto publicado na revista O Mensageiro de Santo Antonio - jan/fev 2012, dos frades franciscanos conventuais de Santo André.

terça-feira, 5 de março de 2013

Associação Meditar/RS - Atividades 2013


Prezados amigos(as) e irmãos(ãs) no Darma,

Saudações cordiais.

No próximo dia 16 de março, às 15h, retomaremos as atividades da Associação Meditar/RS em 2013, com encontro de meditação silenciosa, estudo e prática de orações em benefício de pessoas e seres vitimados por enfermidades ou atingidas por situações tais como o recente caso de Santa Maria - RS.
Aberto a todos os interessados, contribuição espontânea.

Local:
Sede da Associação Meditar de São Francisco de Paula - RS
Rua Dom Pedro II, 109.
São francisco de Paula - RS.

Agenda dos demais encontros previstos para 2013, todos aos sábados, sempre às 15h, no mesmo local:

13 - Abril
04 - Maio
01 - Junho
06 - Julho
03 - Agosto
07 - Setembro
05 - Outubro
02 - Novembro
07 - Dezembro
(Datas sujeitas á confirmação e alteração)

Agradeço de coração se puderem divulgar entre seus contatos.

Muita paz e sanidade.

Enio Burgos
www.bodigaya.com.br