Por Thich Nhat Hanh
Alguém poderá perguntar: é então o
relaxamento o único objetivo da meditação? Na verdade a meditação vai muito
mais além. O relaxamento, entretanto, é necessário como ponto de partida, já
que só após obtê-lo é que a pessoa consegue tranqüilizar o coração e clarear a
mente. Ter o coração tranqüilo e mente clara já é avançar bastante no caminho
da meditação.
Não devemos nos esquecer de que alertar a
mente para a respiração é um método maravilhoso que pode ser usado sempre e não
apenas no início da prática. No século III, assim escreveu o mestre zen Tang
Hoi em seu comentário sobre o Sutra Anapanasati: "Manter a mente alerta à
respiração é o grande veículo usado por Buda para salvar todos os seres presos
no ciclo de nascimento e morte". Medir, seguir e controlar a respiração
são, portanto, instrumentos poderosos que nos habilitam ao controle da mente.
E, para obter controle da mente e aquietá-la,
temos que estar alertas também para os nossos sentimentos e percepções,
observando e reconhecendo cada sentimento ou pensamento que surge. Assim se
referiu a respeito o mestre zen Thoung Chien, ao fim da dinastia de Ly.
"Se o praticante for capaz de enxergar claramente como funciona sua mente,
poderá obter resultados com pouco esforço. Do contrário, todo seu esforço será
perdido". Só há uma forma de se conhecer a mente: observar e reconhecer
tudo sobre ela. E isto deve ser feito todo o tempo, não só nos momentos de
meditação como também no dia-a-dia.
Inúmeros pensamentos e sentimentos surgem durante
a meditação. E se não estivermos atentos à respiração, seremos arrastados por
eles. Mas a respiração não é apenas um meio através do qual podemos nos tomar
imunes a tais pensamentos e sentimentos. A meditação é o veículo que, unindo o
corpo à mente, abre as portas da sabedoria.
Nossa intenção, ao surgir um sentimento ou
pensamento, não deve ser de afugentá-los, pois, continuando nós concentrados na
respiração, eles se afastarão naturalmente. Tampouco deve ser de odiá-los,
espantar-se ou preocupar-se com eles. O que deve então ser feito? Simplesmente
reconhecer a presença deles. Se surge, por exemplo, um sentimento de tristeza,
reconheça-o imediatamente: "Um sentimento de tristeza está surgindo em
mim". Se o mesmo sentimento continuar, continue a reconhecê-lo: "Um
sentimento de tristeza continua existindo em mim". Se surge um pensamento
como: "É tarde, mas os vizinhos ainda estão fazendo barulho",
reconheça-o da mesma forma e se o mesmo continuar, reconheça que ele está
continuando a existir. Reconheço, enfim, qualquer espécie de sentimento ou
pensamento que surja. O essencial é não deixar que eles surjam sem que os
reconheça prontamente, tal como a sentinela que, à porta do palácio, observa
cada fisionomia que entra ou sai.
Não havendo nenhum sentimento ou pensamento,
reconheça não estar havendo nem um nem outro. Esse treino nos faz tomar
consciência dos nossos sentimentos e pensamentos. E, através dele, você poderá
manter o controle da mente. Pode-se, pois, juntar o método de alertar a mente à
respiração ao de tomar consciência dos pensamentos e sentimentos ao mesmo
tempo.
Sem ilusões, a mente torna-se verdadeira. Ao
praticar o exercício de alertar a mente, não se deixe dominar pela distinção
entre bom e mau, criando assim uma luta em seu interior. Sempre que um
pensamento positivo surja, reconheça isso: "Um pensamento positivo acaba
de surgir". Não se apegue ao pensamento, mesmo que este lhe seja
agradável, assim como não tente repeli-Ia mesmo que ele lhe seja desagradável.
Reconhecê-lo é o suficiente. Se você tiver se distraído, deve saber que se
distraiu, e, se estiver presente, deve reconhecer que está presente. Uma vez
alcançada essa consciência, nada mais o perturbará.
Quando me referi à sentinela do palácio, você
deve ter imaginado um corredor com duas portas, uma de entrada e outra de saída
e sua mente qual sentinela registrando cada sentimento ou pensamento que entra
ou sai. Mas a imagem tem uma falha, isto é, a idéia de que o que entra e sai é
diferente da sentinela, pois os nossos pensamentos e sentimentos são nós
mesmos. São partes de nós. Existe a tentação de considerá-los todos ou alguns
deles como forças inimigas que tentam perturbar-nos.
Mas, na verdade, quando estamos com raiva,
nós mesmos somos a raiva. Quando estamos felizes, nós mesmos somos a
felicidade! Nós somos a sentinela e o visitante ao mesmo tempo. Somos ambos: o
observador da mente e a mente ao mesmo tempo. Por conseguinte, tentar segurar
ou repelir qualquer pensamento não é o importante. O importante é estar consciente
dele. Esta observação não é uma objetificação da mente, não estabelece
distinção entre sujeito e objeto. A mente não segura a mente, a mente não
repele a mente, a mente pode apenas observar-se a si mesma. Esta observação não
é a observação de um objeto exterior, independente do observador.
O koan do mestre zen Bach An ilustra bem
isso:
"Qual o som de uma mão batendo
palma?" Ou, outro exemplo: "O que separa o paladar e a papila
gustativa?" A mente percebe a si própria, em si própria. Isto é de grande
importância, tanto que, no Surra da Mente Desperta, Buda usa várias vezes a
frase: "Conscientizar-se do sentimento no próprio sentimento,
conscientizar-se da consciência na própria consciência". A consciência do
sentimento no próprio sentimento é a consciência direta do sentimento enquanto
ele está sendo experimentado e não a contemplação de uma imagem do sentimento,
criada para objetificá-lo como existência externa separada daquele que
contempla.
A consciência do sentimento no sentimento é a
mente experimentando a consciência da mente na mente. A objetificação de um
observador de fora para examinar algo é método da ciência, não da meditação.
Por isso, a imagem da sentinela e dos visitantes (pensamentos e sentimentos)
entrando e saindo pelo portão da mente é falha para ilustrar adequadamente a
observação da mente na mente.
A mente, diz o Sutra, é como um macaco na
floresta, saltando de galho em galho. Para não perder o macaco de vista, em
algum rápido movimento, temos que observá-lo constantemente e nos tornarmos
unos com ele. Mente contemplando a mente, é como um objeto e sua sombra - o
objeto não pode afastar sua sombra. Os dois são um só. Onde quer que vá, a
mente está sempre subordinada a si própria. O Sutra usa, algumas vezes, a
expressão "Amarre o macaco" para significar "Tenha controle da
mente". Mas a imagem do macaco é apenas um meio de expressão. Não há duas
mentes, uma que pula de galho em galho e outra que segue atrás para amarrá-lo
com uma corda.
Geralmente, a pessoa que medita espera
"ver dentro de sua própria natureza" e, assim, poder despertar. Mas,
se você está apenas começando, não espere "ver dentro de sua própria
natureza". Ou melhor, não espere nada. Não espere especialmente ver Buda
ou qualquer versão da "realidade última" enquanto está meditando.
Nos primeiros seis meses, procure apenas
estabelecer e desenvolver seu poder de concentração, criar calma interior e
contentamento sereno. Você afastará a ansiedade, terá real descanso e aquietará
sua mente. Você se renovará e adquirirá uma ampla, clara visão das coisas,
aprofundando e reforçando o amor existente em si.
Meditar é alimento para o espírito e para o
corpo. Através da meditação nosso corpo adquire harmonia, leveza e paz. O
caminho a percorrer entre observar sua mente e "ver dentro de sua própria
natureza" não será muito áspero. Uma vez capaz de acalmar sua mente, uma
vez que seus sentimentos e pensamentos não mais o perturbem, terá chegado ao
ponto em que sua mente se estabelecerá na mente. Ela terá controle direto de si
mesma, não mais diferenciando o sujeito do objeto.
Ao tomar uma xícara de chá, a aparente
distinção entre o que toma o chá e o chá desaparece. O simples ato de tomar uma
xícara de chá, então, pode-se tomar uma experiência direta e maravilhosa, na
qual a separação entre sujeito e objeto não mais existe.
A mente dispersa também é mente, da mesma
forma que as ondas que se movem na água também são água. Quando a mente tiver
obtido controle de si própria, quando ela não mais se alimentar de ilusões se ,
tomará mente verdadeira. Mente verdadeira é o nosso verdadeiro eu, é unidade
absoluta que não pode ser dividida pela ilusória separatividade das coisas,
criadas pelos conceitos e pela linguagem.
(Do livro “Para Viver em Paz” – Thich Nhat
Hanh)
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